QUEM MATOU A ENFERMEIRA?
As instalações eram antigas, como em
todas as Santas Casas deste País. Enfermarias instaladas ou improvisadas em
porões, no subsolo. Ambiente úmido, malcheiroso. Ratos furtivos passeavam nas áreas
externas ou até mesmo nos corredores. Médicos, enfermeiras, técnicos, estagiários e Residentes transitavam
nesses labirintos parecendo verdadeiros robôs. Com uma prancheta nas mãos,
seguido de vários Estagiários e Residentes, o Dr. Estevão seguia parando nos leitos,
fazendo a visita médica de rotina e acompanhando a evolução de cada paciente.
Fazia anotações, perguntava como os pacientes estavam evoluindo, questionava os
estagiários e Residentes sobre essa ou aquela patologia.
__ Residente Saul, este paciente tem
um quadro de icterícia. Quais exames laboratoriais que vão lhe dar indicativos se essa icterícia é
obstrutiva ou não?
__ A dosagem das bilirrubinas, TGO
e TGP.
__ Muito bem. Vamos em frente.
E assim, de leito em leito aquela visita
matinal prosseguia.
__Dr. Estevão, temos um paciente
psiquiátrico, amarrado no leito 13. Porque ele não está na enfermaria de
psiquiatria? Ele está agitado e representa um risco a todos nós e aos demais pacientes.
__É verdade Antônio. Acontece que a
enfermaria da psiquiatria como sempre está lotada. E esse paciente não pode
esperar. Tem agitação psicomotora, precisa ser contido no leito como você está
vendo. Está recebendo uma dose grande de drogas controladas
e mesmo assim,quando cessam os efeitos, ele se agita, fica violento. Tem um
diagnóstico de psicose maníaco-depresssiva ( PMD ). Possivelmente uma
esquizofrenia herbefrênica associada.
Vamos em frente.
Aquela enfermaria possuía 50 leitos que
eram destinados a Clinica Médica. Dentre os estagiários e Residentes, como
sempre, havia os interessados e os desinteressados, aqueles que estão sempre de
mal humor, zangados consigo mesmo e com o mundo. Até parece que estão fazendo
favor em apreender sôbre a nobre arte de curar. Átila era um desses Residentes
desinteressados. Chegou até ao 5º ano aos troncos e barrancos, colando provas e
parasitando trabalhos de colegas competentes.
__Átila, este paciente tem suspeita
de um tumor cerebral. Diga-me o que faria caso ele tenha uma crise de convulsões
reentrantes?
__Dr. Estevão, corro e chamo o
médico!...
Todos os presentes riram muito, menos o
Dr. Estevão, é claro.
__Você está sempre tentando fazer
uma gracinha! Você já é quase médico e esse comportamento não coaduna com a
nossa profissão. Está dispensado da visita de hoje e espero você logo mais no
meu gabinete para conversarmos. Vamos em frente.
O Dr. Estevão mais uma vez repreendeu o
Residente Átila, inclusive mostrando-lhe uma reclamação registrada no livro de
ocorrência, a qual denunciava o Residente por assédio sexual. Vinha assinada
pela enfermeira Clotilde, solteira, de 24 anos, a qual reclamava das atitudes e
insinuações do Residente que, segundo ela, vivia cercando a profissional e
dirigindo-lhe gracinhas. Com a mesma
atitude irreverente e irresponsável, Átila disse ao Professor:
__Ela se acha, Dr. Só porque tem um
rostinho de boneca e um corpinho torneado, pensa que pode sair por aí esnobando
todo mundo. Nada disso é verdade! É a palavra dela contra a minha.
Ermitão era um negro, ainda jovem e musculoso, que tinha passado no
concurso da Santa Casa para a função de Serviços Gerais. Limpava a enfermaria,
trazia medicação da farmácia para abastecer a enfermaria e, também, passou a
ajudar no Anfiteatro, onde os professores de anatomia dissecavam os cadáveres
para as aulas práticas. Era um negro calado, de poucas palavras. O Dr. Estevão,
algumas vezes já o tinha flagrado olhando fixo para as pernas da enfermeira
Clotilde.
O quadro de enfermeiros da Santa Casa
envolvia mais de cem profissionais, pois as escalas eram de 12 horas para cada
enfermaria. Os plantões noturnos eram mais calmos, exceto quando havia
pacientes agitados.
No dia que tudo aconteceu, o Dr.
Estevão como sempre, chegou bem cedo a Santa Casa, foi direto para seu gabinete
preparar-se para mais uma visita de rotina a enfermaria. Eram 6:45 h quando o telefone
tocou. Do outro lado, uma voz de mulher histérica, quase aos gritos, tentava
dizer alguma coisa, porém o choro entremeado não deixava claro o que estava
acontecendo. Até eu outra mulher, menos histérica e menos nervosa, falou:
__Dr. Estevão, mataram a enfermeira
Clotilde aqui na Enfermaria!
__Estou chegando aí agora.
A cena era horripilante. Numa grande poça de sangue, só de calcinha, a
pobre Clotilde estava jogada sobre o chão do sanitário, parcialmente envolta
num lençol branco, com seus dois seios mutilados.
A polícia queria saber tudo sobre a enfermeira assassinada. Seu marido
ou parceiro, seus colegas de plantão, seus amigos e amigas, seus hábitos, enfim
tudo que pudesse levar ao assassino frio e audacioso que a exterminou dentro de seu próprio local de trabalho, sem que ninguém ouvisse ou
suspeitasse de nada.
Nos primeiros interrogatórios, nada de
relevância pode ser detectado pelo Delegado. Clotilde vivia com seu parceiro a
mais ou menos três anos, aparentemente bem e em equilíbrio emocional. Não
tinham filhos por opção. Os colegas da enfermeira estavam em choque, pois todos
gostavam muito dela como pessoa e como profissional. Os médicos, estagiários e
Residentes também estavam chocados, pois ninguém conseguia entender aquele ato
bárbaro, criminoso, com requintes de crueldade. Os dias foram passando e as
investigações patinavam nos labirintos das hipóteses e conjecturas abstratas.
Todas as pessoas interrogadas tinham-se mostrado inocentes, tinham álibis ou
estavam fora do alcance de qualquer dúvida. Na busca do assassino, aventaram-se
as hipóteses mais próximas e portanto, algumas delas, mais absurdas. Teria
aquele paciente psiquiátrico saído de sua contenção e amarras e surpreendido a
pobre Clotilde dentro do sanitário? Nessa hipótese aonde teria ele escondido a
faca do crime? E porque os outros enfermos nada teriam ouvido? Seria o
Residente Átila, num ataque sexual selvagem o responsável por tamanha barbárie?
Ou o Ermitão, que também andava espichando o olho pra Clotilde? Mas todos
tinham seus álibis, que se encaixavam perfeitamente.
Quem matou a enfermeira? Essa pergunta estava quase enlouquecendo o
Delegado Walace, que resolveu mais uma vez voltar ao local do crime.
__Com licença Dr. Estevão? Preciso
de uma palavrinha sua.
__Pois não Delegado, sempre as suas
ordens. Por sinal, já tem alguma pista sobre o assassinato da nossa enfermeira?
__Ainda não Dr., mas continuo
buscando. É por isso que estou aqui. Diga-me Dr., o Sr. trabalha pela manhã e pela tarde aqui na
Santa Casa, não é?
__Sim. Preciso sempre estar em dia
com meus prontuários e seguir a evolução dos pacientes internados em minha
enfermaria. Além do mais, também faço dissecção de cadáveres no anfiteatro,
para as aulas práticas de anatomia.
__Quando o Sr. fica no anfiteatro,
entra pela noite a dentro cortando esses cadáveres?
__As vezes, sim.
__Especificamente nesse dia do
assassinato da enfermeira o Sr. ficou até tarde? Lembra-se até que horas?
__Acho que até as 18 ou 18:30 h. Ora,
ora Delegado! Não venha me dizer que me tem também na lista de suspeitos?
__Tenho sim Dr. Estevão. E acho bom
o Dr. acertar o seu relógio e sua memória, pois sua esposa em seu depoimento confessou
que nessa noite o Sr. precisou ficar até mais que 2:00 da manhã na dissecção
dos cadáveres da anatomia. Preciso informar-lhe também que o IML encontrou
pedaços de lâminas de bisturi nos seios mutilados da enfermeira. E que essas
lâminas são idênticas as usadas na dissecção dos cadáveres da anatomia. Agora,
o Dr. precisa me acompanhar!...
PVH-RO., 10/06/15
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