quarta-feira, 23 de abril de 2014

A TORTURA

A TORTURA
Samuel Castiel Jr.



















              Você está preso! Qualquer  coisa que disser ou fizer poderá ser usada contra  você em juízo. Foi imediatamente recolhido a uma das celas, cujas grades se fecharam ruidosamente a sua frente, deixando-o sozinho naquele cubículo mal cheiroso e úmido. A cela não media mais que 2,0 x 3,0 m, tinha um beliche com duas camas uma em cima da outra. O vaso sanitário não tinha tampa e ficava escondido por trás de uma cortina de plástico fino e rasgado. O odor forte de urina e fezes empestava o ambiente. Tentou ainda argumentar que tinha comparecido aquela Delegacia apenas para prestar depoimento, atendendo a uma notificação da polícia. Não tinha cometido nenhum delito, não tinha antecedentes, era judeu iugoslavo, porém a muito naturalizado brasileiro, jornalista, professor universitário. Era um cidadão de bem, nada justificava sua prisão. Mas de tudo que argumentou de nada lhe valeu. Estava trancafiado por trás daquelas grades. O calendário assinalava 23 de abril de 1975.
          Faltavam quinze minutos para meia noite e o sono quase já o dominava quando o barulho do ferrolho de encontro as grades o fez acordar. De um pulo pôs-se de pé e viu um soldado do exército entrar em sua cela, enquanto o outro ficava na porta. Ambos eram altos e fortes e empunhavam fuzis.
---Você vem comigo! Disse rispidamente  o soldado. Antes de sair puseram-lhe uma venda preta nos olhos. Foi então colocado num carro que  lhe pareceu ser uma camionete. O carro partiu em velocidade. Depois de rodar por alguns minutos em silêncio, o soldado que estava ao seu lado bateu em seu ombro e disse:
---Acho bom você dizer a verdade e tudo o que sabe, meu velho. Caso contrário poderá nunca mais voltar pra sua casinha, nem rever sua querida família.
---Quero saber o que eu fiz? Porque estou preso? Pra onde estão me levando?
---Calma velho! Aqui somos nós que perguntamos. Você só responde.
           Depois de alguns minutos o carro parou e todos saltaram. Andaram guiando-o até aonde deveria ser uma guarita, pois houve uma rápida parada e algumas vozes  foram ouvidas com ordens de comando. Continuaram andando provavelmente por um corredor, até que uma porta grande se abriu ruidosamente. Adentraram todos, ou seja, o preso e os dois soldados.
---Licença Comandante. Aqui está o homem! –disse um deles.
---Ótimo soldado! Levem-no para a sala de interrogatórios. Lá já o estão esperando.
---Ok, permissão Comandante!
          Voltaram todos pelo mesmo corredor até chegarem a uma escada. Anunciaram-lhe então que deveria descer aquela escada, guiado pelos braços do soldado.
---Não tente nenhum truque, caso contrário seremos forçados a machucar você.
           Aquilo lá embaixo parecia um grande porão. Úmido e com o odor de mofo.
 ---Licença Capitão! O Comandante pediu que comece logo o interrogatório e logo mais ele próprio vai descer para interrogar esse comunista.
---Sente-o ali naquela cadeira de ferro, bem embaixo do foco do abajour. Tenha o cuidado de amarrar suas mãos e pés, pois não quero ter surpresas desagradáveis.
---Sim senhor Capitão!
          Contido e amarrado,  com o foco de luz forte em seu rosto, mesmo já sem a venda dos olhos, ele não conseguia ver nada a sua frente, a não ser vultos que se moviam em volta de sua cadeira.
---Quero saber se o senhor está disposto a colaborar conosco ou vai preferir dar uma de herói – a  voz era rude e ameaçadora.
---Não sei do que o Senhor está falando. Aliás eu nem sei porque estou aqui. Sou um profissional, pai de família, brasileiro naturalizado, professor universitário, tenho domicílio e endereço certos e não cometi nenhum delito. Exijo meu advogado.
---Preste atenção, seu vagabundo de merda! Você está sendo interrogado pelo Exército Brasileiro. Aqui ninguém brinca com os adversários comunistas. Ou eles dizem o que precisamos saber ou morrem. Entendeu? E vou adverti-lo mais uma vez: responda nossas perguntas e conte tudo que sabe. Queremos saber qual a sua ligação com Londres,  com a União Soviética ou com Cuba. Quem lá de fora está patrocinando a proliferação do comunismo aqui no Brasil? Quais são os principais nomes que formam a coluna comunista aqui no Brasil? Vamos lá seu comunistazinho de merda.
---Não sei de nada disso que você quer saber. Sou apenas um correspondente da BBC de Londres. Não tenho ligações com a União Soviética muito menos com Cuba. Não tenho também nenhum nome para lhe dar. E mesmo que tivesse não entregaria nenhum amigo. Também não nego que sou do Partido Comunista Brasileiro, o PCB. Mas isso só diz respeito a mim, é a  minha ideologia. Nunca pratiquei nenhum crime conta o meu país.
          Foi quando ele recebeu o primeiro tapa em seu rosto, que pareceu pegar fogo e seus ouvidos pareciam que iriam explodir.
---Eu lhe avisei: aqui no DOI-CODI não se brinca com adversário. Vou lhe dar mais uma chance para não se machucar tanto: quais os nomes dos ativistas desse Partido Comunista de bosta?  Prometo que se você me der uma lista mando você embora. Caso contrário...
---Já disse que não sei do nome de ninguém e mesmo que
         Recebeu a segunda bofetada no mesmo lado que recebera a primeira, só que agora escorreu um filete de sangue do nariz e do ouvido. Pareceu que sua cabeça ia ser arrancada. Sentiu seu cérebro vibrar. Sua visão ficou turva por alguns segundos.
---Já vi que vamos ter que maltratar ainda mais esse infeliz.
         Foi até sua mesa, falou ao telefone com alguém e depois chamou os soldados:
---Levem-no para a sala de choque.
         Deitado sobre a maca de ferro e a ela amarrado pelas mãos e pés, o algoz capitão se aproximou e disse-lhe:
---Espero que fale logo tudo que sabe, caso contrário vai receber algumas vibrações que o ajudarão a se lembrar. É a sua chance de não passar por isso. Portanto, seja bonzinho e vá respondendo tudo que perguntei.
---Vá-se a merda Capitão! Já lhe disse que prenderam, estão interrogando e torturando o homem errado. Eu não sei de nada, não cometi nenhum crime!
         Quase não acabou de falar quando o seu corpo foi sacudido por uma convulsão que o fez levantar a cabeça e os pés. Mais duas ou três vezes recebeu outras ondas de choque que o fizeram urinar e defecar. Como não obtiveram nenhum resultado satisfatório, ainda tentaram arrancar-lhe algumas unhas dos pés e das mãos, porém sem resultado, pois ele havia perdido a consciência. Mesmo assim, quando começou a recuperar a consciência, viu que estava deitado e totalmente imobilizado sobre a maca de ferro, com o foco de luz em seu rosto e uma goteira que vinha de bem alto, com um pingo d’água, atingindo o centro de sua testa. Não quis acreditar no que estava sendo submetido. Não quis acreditar até onde a maldade do ser humano pode ir. Não sabia que horas eram. Porém tinha certeza que estava ali absolutamente só, pois tirando aquele foco, tudo era escuridão. O único barulho era o pingo d’água caindo do alto e se espatifando no centro de sua testa.
---Meu Deus, vou enlouquecer – pensou.
          Aos poucos ouviu gritos de pavor que vinham de bem longe, mas que logo foram abafados pelo som bem alto  de um carro.
--Certamente estão torturando outros companheiros—pensou.
           O dia ainda não amanhecera quando  ouviu barulho nas portas. Alguém estava entrando. Ouviu então a voz de seu algoz, o Capitão. Vinha acompanhado  de outros militares:
---Comandante, esse recurso do pingo d’água é infalível. Caso não dê certo, só nos resta...
---Calma Capitão! Vou eu mesmo interrogá-lo: Sou o Comandante Geral do DOI-CODI –disse  olhando para aquele infeliz todo amarrado e recebendo o maldito pingo d’água sobre sua testa. Vai agora colaborar com o Exercito?
---Não sei de nada do que vocês querem saber, não tenho ligações clandestinas com ninguém nem no Brasil nem no exterior. Não sou bandido, nunca fiz nada contra o meu país. Só quero a liberdade e a soberania do meu povo. Deixem-me em paz!
          O Comandante puxou o Capitão pelo braço e falou alguma coisa inaudível ao seu ouvido. A seguir saiu da sala, acompanhado por todos. Na sequência entraram na sala dois homens fortes, sendo um negro e outro com traços nipônicos. Puseram-se a desamarar o preso. Uma esperança de liberdade chegou a ser vislumbrada em sua mente. Foi quando o homem negro pegou seu pescoço por trás, dando-lhe uma “gravata” até asfixiá-lo e sentir o seu corpo inerte.
            Era o dia 25 de outubro de 1975, 8:45h.
             O ministro da Justiça entra apressado no Gabinete do Presidente da República, General Giesel, e pede permissão para ler a mensagem que acabara de receber:
             “ O Comandante do DOI-CODI, do quartel General do II Exercito, informa que o comunista Vladimir Herzog, convocado para depor naquele Comando, cometera suicídio em uma das celas nas dependências daquele Comando, tendo sido encontrado enforcado com o próprio cinto de suas vestes”
---Permita-me comentar, Senhor Presidente, apressei-me em vir comunicar tal fato a Vossa Excelência porque certamente vamos ter manifestações nas ruas. Teremos que ficar atentos.
---Esses comunistas de merda!!! O imbecil do nosso Comando arrumou não só alguns problemas para nós como as manifestações de rua, os abutres da mídia nacional e internacional caindo em cima de nós, mas também criou e deu vida a um mártir.

PVH-RO, 23/04/14


















           

4 comentários:

  1. Pode nem ter sido nesse roteiro - sinceramente não sei - mas de qualquer forma você criou pelo menos um causo e, volto ao "acho" que tanto detesto, pode ter sido assim mesmo.
    Já mandou colocar no site da ACLER?

    ResponderExcluir
  2. Muito bom... Dr. Samuel Castiel ta de Parabens pelo seu Blog.... interessante... abrcsS

    ResponderExcluir
  3. Houve um caso em Belo Horizonte, de um pedreiro que passava em frente à delegacia da PF quando chegava um preso político. O pedreiro parou para ver a cena e foi preso também. Na época, li no jornal que a família procurava por ele.

    ResponderExcluir