quinta-feira, 3 de abril de 2014

AVENTURAS DO SERINGAL
           ( ANOS DOURADOS )



 Samuel Castiel Jr.








          Parte da minha adolescência foi marcada por férias que eu passava no seringal  São Carlos, do meu pai, no alto Jamari. Nos meus inquietos quinze anos, meu passeio preferido era viajar com meu pai para o seringal. Lá eu podia tudo, ou seja,  podia brincar do que eu quisesse, sem os olhos vigilantes e repreensores da minha mãe. A aventura começava já na viagem, subindo o rio Jamari dentro de um batelão, numa viagem que durava quatro dias e quatro noites. O rio caudaloso, largo, com suas águas barrentas e escuras. O silencio da floresta nas margens do rio com árvores altas e frondosas.  O canto dos pássaros e todo seu equilíbrio ecológico, só era quebrado pelo ruído do motor do nosso batelão (barco) que ia cortando aquelas águas e subindo o rio contra a veloz correnteza. Vez por outra passava o tronco de uma árvore caída,  descendo o rio abaixo, com pássaros aquáticos tipo garças, biguies  e mergulhões nele pousados, que afundavam  sempre que enxergavam alguma refeição naquelas  águas barrentas. Também eram frequentes tartarugas e jabotis que subiam na barranca para pegar sol e quando avistavam nosso barco saltavam e mergulhavam imediatamente. Revoada de pássaros coloridos, araras, periquitos e curicas passavam com frequência sobre nós, quebrando o silencio da floresta e se misturando com o  barulho do nosso motor de popa. A noite a lua era  nossa luminária  celestial, com sua luz prateada penetrando em nosso barco e deixando uma trilha de luz na superfície do rio. Nessa penumbra enluarada, o silêncio da mata se tornava mais enigmático, muitas vezes quebrado por ruídos  indecifráveis. Grandes felinos e outros milhares de animais de hábitos  noturnos certamente eram os responsáveis por aqueles esturros e gemidos que me enchiam ao mesmo tempo de curiosidade e pavor.
              Nossas refeições eram basicamente conservas enlatadas, xarque e ovos. Almoçávamos as onze e meia e jantávamos as 18:00h. Na selva a noite chega rapidamente e com ela os insetos, que veem atraídos pela luz da embarcação e também pelo nosso sangue. Depois do jantar tentávamos dormir, mas nossa embarcação continuava cortando as águas barrentas. Com um possante farol que iluminava nossos caminhos, os olhos atentos do prático de bordo iam sinalizando as manobras necessárias para desviar dos troncos caídos que passavam com velocidade arrastados pela  correnteza e representavam grande risco aos navegantes noturnos  em caso de colisão. Antes de pegar no sono, sentava-me com meu pai,  tripulantes do barco e outros passageiros,  na maioria seringueiros que meu pai contratava em Porto Velho para o corte da seringa. A conversa falava de estórias de seringais e da floresta, repletas de valentia e mistérios, entre uma pitada e outra de cigarros de palha, varando a noite até que o sono ia derrubando um por um. Quando o sol ainda nem despontara, as 5:00h, já havia movimentação no barco: era  o cozinheiro acendendo o fogão e logo sentíamos o cheiro do café, de ovos mexidos com bacon  fritos para o chamado quebra-jejum. Quando o dia realmente clareava todos já estavam acordados para mais um dia de viagem, continuando a subida daquele rio que parecia não ter mais fim. O sol era sempre muito forte e o calor insuportável, pois o vento que cortava nossos rostos também  era quente.  As noites muito frias e úmidas.
         No seringal havia um casarão central com algumas casas no seu entorno. Todas cobertas de palha. O casarão abrigava meu pai e pessoas da família, quando raramente iam visitá-lo. Alem dessas pessoas também moravam no barracão a cozinheira e o  capataz João Ferreira, primeiro tropeiro e homem  da  confiança de meu pai. Nas casas do entorno moravam outros funcionários como outros tropeiros e o gerente com sua família. Também havia alojamento para seringueiros que precisassem ficar hospedados por ali até seguirem para suas colocações no interior da floresta. Havia também o armazém, onde eram guardados os mantimentos, armas e munições, bem como alguns silos para guardar as  pelas de borracha que chegavam mensalmente a fim de serem transportadas para Porto Velho, onde eram comercializadas com o Banco da Amazônia S.A., o BASA.
         De tantas estórias que ouvi aqueles homens contarem nas noites que passava no seringal, muitas me chamavam a atenção e até hoje povoam minha memória daqueles tempos quando eu corria nas margens do rio Jamari, brincando  com a  cadelinha “Putz”, uma viralata que meu pai levou para lá e com quem  fiz grande amizade. As vezes ia pescar no rio, jogava o anzol, amarrava a linha na arvore e esperava o peixe puxar. A “Putz” também me ajudava, ficando de olho na linha. Quando esta começava a esticar ela começava a latir, chamando minha atenção para o peixe fisgado. O desagradável dessa pescaria eram as pragas de mosquitos, piuns, borrachudos  e  abelhas que insistiam em nos atacar mesmo que estivéssemos com roupas de mangas compridas, luvas, e as calças enviadas em botas. Sempre esses bichos achavam um jeito de me picar. E como sempre fui alérgico, produziam  um verdadeiro estrago no meu corpo. Mas mesmo assim gostava de ir a beira do rio pescar, pois ali via centenas de borboletas de todas as cores que, quando pousadas, formavam um verdadeiro tapete multicolorido. Periquitos em bandos também pousavam nos barreiros a margem do rio para completar suas refeições, fazendo um alvoroço peculiar. Achava fantástica  aquela natureza  rude, bruta e simples, que só tinha a mim e a “Putz” como testemunhas. Brincava o dia inteiro, com um estilingue pendurado no pescoço e uma sacola de pedras ou palanquetas de chumbo amarrada na cintura tipo uma pochete. Meu pai não queria que eu me afastasse muito do barracão, pois o perigo poderia estar em  qualquer  parte. Mas, ouvindo as estórias contadas por aqueles seringueiros, ficava com meu imaginário aguçado: queria ver a cobra grande que poderia engolir um homem inteiro ou comer um boi e ficar com sua  cabeça de chifres pra fora até que ela apodrecesse e caísse, quando então voltava a sua vida normal. Queria ver também o macaco gogó-de-sola, que atacava seringueiros, pegando-os de surpresa na mata, pulando em seu pescoço e sufocando-os até a morte. Dava tudo pra ver uma onça pintada, o maior felino da Amazônia, atacando e devorando um porco do mato ou um viado. Queria ver também o Saci-Pererê, com uma perna só, fumando seu cachimbo;  a Mãe-da-Mata, o Uirapuru, com seu canto  sedutor e encantador;  enfim queria ver tantas figuras lendárias que os seringueiros acreditam e juravam  já ter  visto ou se relacionado com elas em algum momento  de suas vidas solitárias em plena selva. Algumas estórias pareciam mais reais que outras. Algumas eram tão fantasiosas  que dava vontade de rir. Era então que meu pai me beliscava por baixo da mesa tosca iluminada por lamparinas. O João Ferreira, capataz e homem de confiança de meu pai, tinha umas estórias que impressionavam a todos, mas que me deixavam com uma pulga atrás da orelha e com vontade de rir. Contava ele que certa vez, quando trabalhava em outro seringal, no Rio Machadinho, pra chegar até lá, tinham que atravessar algumas corredeiras e cachoeiras. O barco sempre muito pesado, com muitas pessoas e cheio de mercadorias,  tinha que atravessar essas cachoeiras com muito cuidado. Homens habilidosos chamados de práticos, iam guiando e orientando o melhor caminho, enquanto outros com grandes varas empurravam e desviavam o barco entre enormes pedras, cobertas de limo. Mesmo assim, o barco de vez em quando se chocava com essas pedras jogando homens naquelas águas revoltas, que eram infestadas de peixes elétricos, chamados de puraqués. Esses peixes são capazes de produzir ondas de choque de até mil volts. Quando encontram açaiceiros a beira dos rios, produzem choques nas suas raízes fazendo com que caiam cachos de açaí,  que servem de alimento para eles. Pois bem, segundo o João Ferreira, quando os homens caiam nas águas revoltas das cachoeiras, os puraqués acertavam choques em suas jugulares, matando-os instantaneamente.  Não sei porque, depois dessa, tive vontade incontrolável de rir!...Tomei outra vez um forte beliscão de meu pai.
           Certa vez estávamos sentados para o almoço e sobre a mesa havia uma panela fumegante, de onde saia um vapor com um cheiro agradável de comida gostosa. As pessoas que se serviam, pegavam o braço de um macaco que repousava sobre um prato vazio e limpo e, com ele, se serviam da farinha utilizando a mãosinha peluda   como se fora uma concha. Claro que na panela, aquele ensopado cheiroso,no leite da castanha, era do dono daquela mão. Fiquei enjoado e me recusei a comer. Foi preciso o cozinheiro  improvisar alguma outra comida que continha pra variar feijão, charque e ovos. Todos ficaram surpresos com a minha recusa, pois juntamente com o mutum, uma ave galinácea, constituem  uma das melhores iguarias da selva.
          São muitas as aventuras vividas naquele seringal. O que parece incrível pra nós, acontecia por lá.  Meu pai tinha um seringueiro  o mais velho de todos, acho que já tinha uns 70 anos e, juntamente com sua mãe de aproximadamente 90 anos, viviam em uma colocação distante, a cerca de 8 horas do barracão em montaria de jegue. Pois bem, esse casal de mãe e filho, já estavam no seringal do meu pai quando ele chegou, a mais de  vinte anos. Quando raramente vinham a cidade, tinham o tique de ficar se batendo e se abanando com as próprias mãos, como se estivessem matando ou espantando mosquitos, piuns, borrachudos ou abelhas que não existiam mas que os atormentavam por longos anos no interior da floresta. Havia também relato de homicídios cometidos por seringueiros que eram traídos, ou que tinham suas companheiras estupradas por outros seringueiros que saiam de suas colocações, andavam horas ou até dias para espreitar e pegar as mulheres que ficavam sozinhas enquanto seus maridos estavam no corte das seringueiras, pois saíam geralmente quatro horas da manhã só retornando as 18, espaço quando suas mulheres indefesas ficavam a mercê da insânia de seringueiros  tarados e sem mulher
             Como dizia meu pai, muitas vezes ele tinha que ser o padre, o delegado e o médico,  já que tinha quase sempre que casar, prender ou medicar as pessoas que precisavam da sua ajuda.
               São muitas as recordações daquela época, quando corria todo encapotado com aquelas roupas que me deixavam mais parecido com um apicultor, seguido pela “Putz”.
               Quando o preço da borracha se tornou inviável, a maioria  dos grande seringais declinou e enveredou pelo garimpo em busca de jazidas de cassiterita ( estanho ) pois grandes jazidas desse minério foram detectadas na Serra da Imburana, cujo principal filão estava  nos igarapés do seringal Massangana. Meu pai antes de vender  o Seringal São Carlos ainda organizou várias expedições juntamente com o Plinio Benfica em busca desse minério.  Mas já não era a mesma coisa. Nessas expedições  não havia lugar para crianças ou adolescentes. Pesquisavam exaustivamente os igarapés, assentando e levantando acampamentos quase que diariamente. Realmente era muito cansativo eu não queria mais me arriscar. Além do mais foram surgindo outros tempos, outras brincadeiras e eu sem me dar conta fui ficando adulto. Aquelas aventuras  e aquele  pedaço da floresta ficaram  e ainda povoam  as minhas  lembranças, como uma época  boa e inocente  da  adolescência, e que  hoje fazem parte das minhas reminiscências  como  verdadeiros  anos  dourados!


PVH-RO, 03/04/14

Nenhum comentário:

Postar um comentário