terça-feira, 2 de dezembro de 2014

INCÊNDIO NO CUNIÃ

INCÊNDIO NO CUNIÃ

Samuel Castiel Jr.









          





           
             
             (  Macacos me mordam, mas nunca fumem!...)


        
Ele sempre foi um "bon-vivant". Filhinho de papai, carrão importado, nunca se formou em nada, apesar de estar sempre matriculado em alguma faculdade. Freqüentava as melhores casas da noite carioca. Viciado em maconha, ecstasy e cocaína. O crack não o atraia, pois tinha medo do seu efeito deletério no cérebro. Sempre teve um porte físico atraente, era alto e musculoso. Freqüentava academias quando não estava em crises de depressão. Seus pais abastados viviam criticando sua maneira irresponsável de viver.
        Certa noite, Marcelão, curtia uma balada na boate 021, depois de já ter passado em mais umas 3 na Lapa quando se deparou com Julieta, mais conhecida por Ju. Cruzaram olhares e logo se identificaram. Tinham tudo a ver  um o outro! Ela também era
"patricinha"filhinha de papai, geneticamente rica por herança, nunca trabalhara e nunca quis nada com os estudos. Freqüentou algumas faculdades mas não se formou em nada. Beberam alguns whiskys a mais e foram para o apartamento do Marcelão no Leblon, onde puderam se conhecer mais profundamente!...Ju estava encantada com aquele homem, rico, bon vivant e que sabia aproveitar as coisas boas da vida. Como ela, sua filosofia de vida era viver a vida mesmo que fosse na corda bamba, linha divisória entre o bom viver dos abastados e o imensurável abismo das drogas. Marcelão também achou  a Ju muito interessante. Principalmente quando soube que ela era rica, que vivia de renda e que seu pai deixou para ela inúmeros imóveis e até mesmo prédios na capital de Rondônia, Porto Velho. Ficou também muito interessado nas terras que Ju lhe disse possuir, cerca de 50 hectares, na Reserva Extrativista do Cuniã,  nos arredores de Porto Velho. A reserva toda era imensa, com  uma extensão de cerca de 55.850 hectares, a margem esquerda do rio Madeira, no sentido de Humaitá. Lá a Ju explicou-lhe com detalhes seu projeto de piscicultura, onde mantinha tanques naturais para a criação do pirarucu, tido como peixe nobre para exportação para os Estados Unidos e Europa. Vários tanques foram criados dentro do próprio lago do Cuniã, com cercagem especial de nylon. Ali os peixes eram colocados como alevinos, alimentados com Tilápias e ração especial para crescimento e, em cerca de 3 anos, já podiam ser abatidos para exportação. Os contratos seriam fechados com grandes frigoríficos internacionais, com pagamento certo em dólar e euro. Tudo parecia muito atraente para o Marcelão, principalmente porque ele não iria precisar meter a mão na massa. Um bom gerente e alguns colaboradores resolveriam todos os problemas. Além do mais, poderia mostrar aos seus pais que não era aquela pessoa inerte que eles sempre acharam que fosse! Aceitou quase de imediato a proposta de Ju, de ir com ela para gerenciar seus negócios e seus tanques de pirarucu. Poderia sair daquela selva- de- pedra, respirar o ar puro da floresta, comer peixes saldáveis das águas doces do Cuniã. Sabia também que teria que viver e desfilar com a Ju em todas as baladas. Mas, pensando bem entre a vida vazia e monótona que levava e naquela vida cheia de aventuras que lhe acenava, resolveu encarar:
-- Minha doce Ju, você acabou de arrumar um companheiro e um gerentão para os seus negócios! Vamos ser os maiores exportadores desse pirarucu.
            Viajaram em lua-de-mel, primeiro para Miami, voltaram por São Paulo e finalmente chegaram a Porto Velho.  As terras de Ju eram extensas e privilegiadas, a margem do lago Cuniã. A reserva era lindíssima, extremamente bem cuidada e vigiada, ficando a cerca de 130 km de Porto Velho. Ali se reproduziam milhares de espécies, vegetais e animais. Revoadas de araras coloridas, papagaios e curicas passavam em bandos mal o dia começava a clarear. Borboletas multicoloridas formavam como se fosse um tapete nas areias brancas das praias que se formavam quando as águas baixavam. Macacos diversos desciam das árvores e vinham  buscar comida nas cozinhas e até mesmo nas mãos de quem lhes oferecesse.  A noite, o canto de pássaros noturnos misturava-se com ruídos longínquos de onças e outros felinos. Era um verdadeiro paraíso no meio da selva tropical. A casa de Ju era uma verdadeira mansão, porém obedecendo aos padrões da reserva, ou seja construída em madeira e coberta de palha artesanalmente trançada. Os cômodos eram de luxo, climatizados, com iluminação indireta, TV LED, HD FULL, Multimídia, DVD Play, som com Home Theater, frigobar, espelhos nas paredes, etc. No hall uma grande piscina, com deck, um bar muito iluminado e com uma variedade incrível de bebidas. Marcelão gostava mesmo era de atar sua rede na varanda do hall, onde ficava a se embalar por horas até o sono chegar. Quando a Ju vinha da cidade para dormir com ele, os dois ficavam a se embalar na rede, tomando whiskys importados e fumando charutos cubanos. Nas noites de lua cheia, apagavam todas as lâmpadas e deixavam que uma réstia de luz prateada viesse iluminar aquela rede onde se amavam até que o clarão  do raiar de um  novo dia os surpreendesse sonolentos! Amaram-se assim por alguns meses, até que Marcelão e Ju andaram se desentendendo. Marcelão além de não gostar de trabalhar, estava  sentindo-se cansado de tudo. Bebia demais, fumava também demais. Voltou a usar drogas, porém usava todas as noites a maconha, que era mais fácil de  comprar. Deitava-se naquela rede, tomava uns whiskys e acendia um charuto que não era mais cubano e sim um tarugo de maconha. Certa noite de sexta-feira, sentindo-se deprimido, Marcelão estirou-se na rede, colocou uns três tarugos de maconha na mesinha de cabeceira, próximo a rede, serviu uma dose dupla de whisky com bastante gelo e embalou-se maciamente algumas vezes na rede até que adormeceu. Alguns macacos pregos e barrigudos  haviam entrado sorrateiramente na mansão e se alojado sobre os caibros de madeira, próximos a cobertura de palha, onde eram praticamente invisíveis para o Marcelão. Esses macacos já estavam acostumados a entrar e dormir ali todas as noites, saindo bem cedo para comer frutas e folhas das arvores. Estavam também acostumados a assistir o Marcelão beber whisky, acender e fumar seus tarugos de maconha.  Nessa noite o macaco-chefe do bando, foi mais ousado: desceu, aproximou-se da escrivaninha perto da rede do Marcelão, pegou um tarugo de maconha e a caixa grande de fósforos. A seguir subiu novamente para os caibros da cobertura, colocou o tarugo na boca e, imitando o Marcelão, riscou o fósforo tentando acender o tarugo de maconha, mas como não conseguia, levantou o braço com o fósforo aceso, tocando na palha seca da cobertura. O fogo pegou de imediato, pois a palha estava muito seca pelo sol abrasador daquele verão. Não deu tempo para mais nada. Os macacos fugiram rapidamente, o Marcelão quase morreu intoxicado pela fumaça, não deu pra salvar nada. Quando os bombeiros chegaram só encontraram as cinzas na mansão da Ju. O fogo destruiu ainda mais de cem hectares de floresta da reserva, com um prejuízo incalculável da flora e fauna do reservatório. O incêndio durou quase uma semana para ser controlado, mesmo usando todos os recursos disponíveis, inclusive helicópteros da força aérea.
         Marcelão voltou para o Rio. Depois de alguns dias deixou uma mensagem de voz na caixa da Ju:
--Espero que me perdoe, Ju. Juro que foi um acidente, até agora não sei como aquele incêndio começou. Mas independente de tudo que aconteceu, quero dizer a você que eu já havia chegado a conclusão que não tinha mesmo nenhuma aptidão para seus tanques de pirarucu.
          Os contratos com os frigoríficos internacionais não foram cumpridos, gerando multas que tornaram insolventes os negócios da Ju.

Nota do Autor: O presente conto é baseado em fato real ocorrido naquela reserva. Os personagens entretanto são fictícios e qualquer semelhança terá sido mera coincidência.


PVH-RO., 1º/12/14

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

MISTÉRIO NO GARIMPO



MISTERIO NO GARIMPO

Samuel Castiel Jr.


       
          A água era escura e barrenta. A visibilidade não deveria passar de uns dois metros mas foi suficiente para ver aquele vulto de mulher sem nenhuma roupa de mergulho, ou melhor, sem nenhuma roupa de nada.Estava absolutamente nua. Olhava-me com um sorriso malicioso. De repente apontou na direção oposta para onde eu nadava como se me chamasse. Senti-me atraído e não pude resistir. Nadei em sua direção, seguindo aquele corpo de mulher nua e sensual, de cabelos compridos e negros. Quem seria? Havia muitas mulheres naquele garimpo, mas todas elas tinham outras atividades, como cozinheiras, amantes ou simplesmente vendendo seus corpos. Mas nenhuma delas tinha aquela  silhueta, aquelas formas sensuais. Também nenhuma delas mergulhava aquela profundidade em busca de ouro, muito menos sem nenhum equipamento... Como se estivesse hipnotizado, continuei nadando seguindo aquela mulher misteriosa. Quando nos aproximávamos de um barranco profundo, ela parou e apontou mais uma vez em direção ao barranco e nadou rapidamente até desaparecer nas águas barrentas daquele rio. Cheguei bem perto do barranco, cravei meu "abacaxi" no barro e acionei o botão elétrico fazendo aquela tralha se aprofundar no barro, cavando e ao mesmo tempo aspirando todo o barro, jogando-o para a superfície, onde toda aquela terra misturada com pedras iria ser lavada e decantada, sobrando no final do processo só o ouro amarelo em forma de pepitas ou mesmo como pequenos grãos de areia fina. Depois de mais ou menos uma hora nesse trabalho, parei e dei sinal para ser içado. Pouco tempo depois de subir na Balsa, fui surpreendido com a euforia de meus companheiros, que gritando vieram cumprimentar-me:
--Viva ARTHUR! Vamos "bamburrar"! Pelo jeito estamos em cima de um filão. É muito ouro, cara!
      No garimpo as notícias correm rápido. No dia seguinte, quando o dia mal clareou, nossa balsa estava toda cercada por dezenas de outras balsas e dragas, todos ávidos por mergulhar e também extrair aquele ouro das profundezas do rio, no mesmo filão que eu descobrira, com a orientação, é claro, daquela mulher misteriosa. Garimpeiros experientes começaram a mergulhar bem cedo. Levavam seus equipamentos de mergulho com o tubo de oxigênio e pipetas enfiadas nas suas bocas. Alguns portavam "pés-de-pato". Mas levavam também seus "abacaxis" para perfurar e sugar a barranqueira. Estava assim formada o que eles chamavam de "muvuca". Nesse dia, começaram os mistérios e problemas: dois garimpeiros não mais voltaram de seus mergulhos. Foram encontrados boiando rio abaixo, depois de 2 dias de buscas sem nenhum êxito. Nos dias que se seguiram mais mortes foram contabilizadas. Sempre os corpos boiando rio abaixo. Nos meus mergulhos continuava a ver a mesma mulher que ora apontava para um lado, ora para outro, fazendo com que minha produção de ouro sempre fosse a melhor daquele garimpo. Como aparecia, desaparecia nas águas barrentas. Depois de alguns dias, com as mortes acontecendo, todos os mergulhadores estavam em pavorosa, com medo de mergulhar. Até que um dia um garimpeiro foi içado quase morto. Conseguiu sobreviver, após ser acometido de febre altíssima por vários dias, quando delirou muito, sempre falando de uma mulher que encontrou lá embaixo das águas barrentas.
--Ela estava lá! Era linda, corpo perfeito, cabelos longos e negros. Chamou-me para nadar com ela e afastou-se levando-me para o canal do rio, longe da barranqueira. Em determinado momento aproximou-se mais de mim e rapidamente cortou meu tubo de oxigênio. Quando ia cortar minha corda de içamento, liguei o botão do "abacaxi" e apontei em sua direção. Imediatamente ela se afastou e desapareceu nas águas revoltas e barrentas. Fui içado e estou salvo graças ao meu bom Deus! Escapei por pouco!
Ouvi tudo que aquele garimpeiro contou e não tive dúvida: era ela! A mesma mulher misteriosa que me levou até aquele filão de ouro. Não contei nada a ninguém, pois iriam achar que eu estava blefando ou ficando louco. As coisas começavam a se encaixar. Mas porque aquela mulher misteriosa matava os garimpeiros? Porque comigo ela foi agradável e levou-me para o filão de ouro? A noticia se espalhou rapidamente e ninguém mais se atreveu a mergulhar naquelas águas. Com medo mas muito curioso, depois de alguns dias, quando as balsas e dragas já haviam deixado aquele local e quando o nosso entorno já estava livre daquela "muvuca", aproveitei para dar um último mergulho, pois a noite estava muito clara com uma grande lua que deixava dourada a superfície do rio. Ao descer a cerca de uns 5 metros, fiquei apavorado, pois a mesma mulher apareceu na minha frente. Procurei acalmar-me, pois seu semblante era amistoso e havia em seu rosto o esboço de um leve sorriso. A lembrança da morte inexplicável de muitos amigos garimpeiros, com medo daquela silhueta encantadora e fatal de mulher, puxei a corda dando sinal para ser içado. Imediatamente ela se postou a minha frente e cortou a corda de içamento. Senti que era chegada a minha vez de morrer...Mas, em vez de arrastar-me para o meio do rio, como fez com os outros, ficou colada abraçando  o meu corpo, tocou a minha face com seus dedos, beijou meu rosto e abraçou-me num gesto  de afago sensual. Fiquei estático e arrebatado, tomado de um sentimento de profundo amor! Na seqüência ela impulsionou-me para a superfície e num gesto de carinho despediu-se com um aceno de adeus.
Quando cheguei a superfície, meus companheiros estavam em pavorosa agitação              e gritaria:
--Home, que aconteceu lá embaixo? Pensávamos que seria mais um morto pra aparecer boiando!...Você é louco? Bem que avisamos o perigo que iria correr!...
       A lua silenciosa e indiferente continuava iluminando como um farol aquelas águas barrentas.
        No dia seguinte nossa balsa desatracou e fomos embora com alguns quilos de ouro e eu, com essa lembrança inexplicável que irá comigo até meus últimos dias!...


PVH-RO, 19/11/14.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

O QUIABO

O QUIABO

Samuel Castiel Jr.












         O quiabeiro ( Albemoschus esculentus) é uma planta da família malva ( Malvaceae, de origem africana. Seu fruto é conhecido como quiabo, guingombô, gombô, etc. É uma cápsula fibrosa cônica, verde e peluda, cheia de sementes brancas, redondas, muito usado em culinária antes da maturação quando endurecem. Suas folhas são lobadas e as flores axilares, ou seja, brotam a partir das gemas  axilares. Muito usado em pratos típicos como o caruru, quiabada, etc, bem como também tem propriedades medicinais no combate a diabetes, úlcera gástrica, intestino preso, é anticancerígeno, suaviza as queimaduras e abranda a psoríase, dentre tantas  outras coisas interessantes e milagrosas da medicina alternativa,  devido as suas propriedades oxidantes  e sua  riqueza em vitaminas  A, B e C.  Algumas dessas propriedades medicinais, segundo alguns estudiosos, estão relacionadas a uma gosma extremamente lisa e grossa que é expelida pelo quiabo quando ele é esmagado, cortado ou fervido e cozinhado.
          Mas o nosso personagem Angelino, ganhou o apelido Quiabo desde sua tenra infância, quando no  colégio seus colegas tinham que pagar o seu lanche, pois andava sempre “liso”, ou seja sem nenhum tostão. Parecia até que seus bolsos eram furados, pois não traziam nenhuma moeda sequer. Quando terminavam as aulas do colégio, voltava pra casa a pé ou pegava carona de algum colega que morasse mais ou menos perto da sua casa. Sempre foi assim. No início ficava bravo quando o chamavam de quiabo, chegando mesmo até a brigar na rua. Mas aos poucos foi aceitando a alcunha. Era Quiabo pra cá, Quiabo pra lá e assim ficou conhecido. Quando algum amigo novo perguntava porque o apelido de quiabo, dizia que era porque gostava e era fissurado por comidas  típicas que continham essa fruta gosmenta.
---Não tem comida mais saborosa que um caruru preparado por quem sabe fazer! –dizia o Angelino quando alguém tentava constrange-lo chamando-o de Quiabo. Vivia de uma aposentadoria que mal dava para sua sobrevivência. Mas não se deixava abater. Era boêmio nato e estava sempre nas melhores rodas de pagode e como de costume,  esperando que algum amigo pagasse um trago.
--Bebo bem e tenho sorte, dizia o Quiabo. Bastava que alguém pagasse uma dose de pinga para que ele ficasse logo alegre. Tinha também a mania de tocar um cavaquinho fantasma, pois fazia apenas os gestos como se fosse um grande cavaquinhista, tocando um instrumento que só ele via e ouvia. Certa vez engraçou-se de uma procuradora negra que freqüentava o recinto festeiro e lá pelas tantas começou a tocar seu cavaquinho e a olhar pra mulata com cara de pidão. Bastava que ela se descuidasse e olhasse para em outra direção que o Quiabo imediatamente tocava seu cavaquinho fantasma:
--Neguinha tu tens que ser minha de qualquer maneira!... etc.
        Bastava que ela voltasse seu olhar em sua direção para que ele rapidamente parasse de tocar aquele cavaco imaginário e tomasse  uma  atitude insuspeita. Mas, alguém avisou a procuradora que o Quiabo estava com graça pra ela. Até que ela simulou e  pegou o Quiabo tocando seu cavaco imaginário e cantando: “Neguinha tu tens que ser minha de qualquer maneira...” Brincalhona, a procuradora se levantou, foi até a mesa do Quiabo e pediu:
--Vi o senhor tocando e cantando um samba que eu gosto muito. Pode cantar para mim?
           O Quiabo quase se derreteu. Ficou pálido, sem graça e disse:
--É só de brincaderinha!...
            Mesmo assim ela ainda pagou uns tragos para ele. Mas, o Quiabo era sempre assim, tinha o espírito cheio de alegria, mesmo que seus bolsos sempre estivessem vazios.
            Na vida amorosa, cultivava um amor platônico pela Maria BTL, mulher morena, bem dotada, carinhosa  e de quadris largos. Sempre que estava  bebendo suas pingas, lembrava-se dela, apesar do tempo que já ia longe, quando costumava   levá-la para os “banhos” ( pegando carona dela mesma, é claro! ) principalmente ao balneário chamado Torre, onde ficava a sós com aquela morena voluptuosa, banhando-a e ensaboando-a com sabonete “Lifeboy”nas águas correntes do igarapé. Certo dia lá estava o Quiabo sentado em uma rodada de bons bebedores quando alguém sugeriu ir para um boteco que a Maria BTL tinha inaugurado lá pras bandas do bairro Tucumanzal. Segundo informações, a cerveja lá era estupidamente gelada e o tira-gosto de peixe bem crocante, irresistível. Mas havia um problema: a Maria só abria o seu boteco a noite e era pleno sábado a tarde com um sol causticante. Foi aí que apareceu a figura do Quiabo, dizendo:
--Pode deixar, meu caro! Lá no bar da Maria BTL quem tem moral sou eu. Afinal, foi meu antigo xodó.
           Não foi preciso botar mais pilha no Quiabo. Pegou o telefone e discou. Afastou-se um pouco pra falar e quando voltou foi logo dizendo:
--Tá tudo resolvido. Ela vai abrir o boteco pra mim e ainda vai preparar bons tira-gostos. Quantos de vocês querem me acompanhar? É claro que vão ter que me pagar   alguns tragos, pois afinal consegui que a BTL abrisse nos aceitasse no seu boteco a essa hora.
            Alguns amigos seguiram o Quiabo, rumo ao boteco da Maria BTL. E realmente todos foram bem recebidos. Cerveja gelada, bom tira-gosto e um bom violão fizeram daquele ambiente um oásis naquela tarde quente e ensolarada de Porto Velho. O Quiabo depois de vários tragos, ficou embriagado, mas não esquecia o refrão:
--Bebo bem e tenho sorte!
              A  noite chegou e as primeiras luzes da cidade começaram a se acender. Uma lua dourada apareceu no céu, trazendo mais inspiração ao violeiro Julinho, que cantava e tocava grandes sucessos da MPB e da boemia. Foi quando o Quiabo começou a ficar impaciente, dizendo que já era hora de ir embora, pois sua mulher virava onça quando ele chegava tarde da noite. Depois de muita insistência, o Quiabo pediu pra fechar a conta, mas houve protesto de todos. Após uma votação sumária, foi decidido chamar um taxi e mandar o Quiabo pra sua casa.  A conta da mesa festeira foi fechada parcialmente, e quando a Maria BTL mostrou a conta para o já embriagado Quiabo, ele fez menção de meter a mão no bolso como se fosse pegar um dinheiro que não existia. Foi quando o Julinho do violão parou de tocar, deu um solavanco e puxou o braço do Quiabo, dizendo:
--Para de graça, Quiabo! Sabemos que você não costuma andar com dinheiro. Vou pagar essa conta parcial e depois reabrimos outra conta, OK?
           Meteu a mão no bolso de sua jaqueta,  de onde tirou um talão de cheque de cinquenta folhas. Quando se preparava para preencher o cheque, a Maria BTL esticou o pescoço por cima da cabeça do Quiabo,  olhando aquele grosso talão de cheques, parecendo o pescoço uma garça quando avista o peixe da sua desejada  refeição. Alguém veio correndo informar que o taxi chamado havia chegado.  O Quiabo já embriagado foi conduzido ao taxi e o Julinho do Violão deu o endereço do Quiabo para o motorista. Quando abriu a porta do taxi, junto com a Maria BTL, empurraram o Quiabo para o banco de trás. O motorista ainda advertiu:
--Cuidado com o ancião! Ele pode se machucar.
           Cinco horas da manhã, naquele silêncio do novo dia que chega, após uma noite com a fogosa Maria BTL, sozinho, o Julinho do violão ainda dedilhava as cordas de seu instrumento cantando:
--Acorda Maria Bonita, Acorda vem fazer café, Que o dia já vem raiando....
          E por aí vão muitas estórias e lambanças do Quiabo. Até que certo dia, ele chamou seu melhor amigo Roque e confessou:
--Não quero mais ser chamado de Quiabo.
--Então só tem um jeito, meu velho –disse-lhe o Roque. Você ganha sozinho na Mega-Sena, fica rico, cheio da grana e tudo estará resolvido. Caso contrário, e ainda com muita resistência, você poderá ser chamado de liso.   KkKk -- Roque deu aquela gargalhada e foi-se embora.

Nota do Autor: Qualquer semelhança com fatos e personagens deste conto terá sido mera coincidência


PVH-RO. 04/09/14


 

     





quarta-feira, 13 de agosto de 2014

GLADIADORES DO ASFALTO


GLADIADORES  DO  ASFALTO

Samuel Castiel Jr.












       Mesmo quem estivesse presente naquele local não acreditava no que via. Motos de 1.200 cilindradas em alta velocidade e   em sentido contrário voavam uma de encontro a outra. Os motoqueiros vestindo roupas pretas, capacetes e botas, traziam um garupa igualmente vestido. Esse homem da garupa portava uma vara longa que apontava para o motoqueiro que vinha em sentido contrario. O objetivo era atingir e derrubar a dupla de motoqueiros adversários. Tinha muito a ver com os esportes medievais japoneses, só que os “cavalos” eram de aço. Quando o motoqueiro era atingido, era jogado a distância, a moto se desequilibrava, caía e saía se arrastando pelo asfalto. Algumas se despedaçavam ou pegavam fogo, explodindo em poucos minutos. Tudo isso aplaudido em delírios e gritos de uma platéia que vibrava histérica. Feridos ou mortos eram retirados do local por ambulâncias particulares, as quais tinham seus médicos e paramédicos. Ninguém podia obstruir a pista, a não ser para retirar pedaços de motos ou de corpos. As disputas eram seqüenciais, frenéticas. Mal uma dupla caía, já vinha outra acelerando, até que toda uma bateria tivesse disputado.
          Esse evento era clandestino, proibido pela polícia e chamado de Os Gladiadores do Asfalto. Ocorria uma vez por ano em um trecho vicinal da autopista BR-316, da Regis Bitencourt,  na divisa do Paraná com  Santa Catarina.
    Oscar Willis tinha 19 anos, filho único de pais abastados, era louro, atlético, e seu hoby era colecionar motos. Halley Davis, Suzuki, Ducati, Honda, Yamaha, tinha motos de todas as marcas. Preferia as de  1200 cilindradas, que eram as mais possantes e que serviam para as competições. Jonhy Aroeira era seu amigo inseparável e costumava competir sempre como garupa, pois era firme, agüentava os trancos e manobras arriscadas,  tinha uma boa pontaria para derrubar seus adversários com a vara, conhecida entre eles com “lança-ponta”. Naquele ano, a competição tinha tudo pra “bombar”, pois as redes sociais estavam cheias de desafios, apostas encontros e convites. Segundo a organização,  que se mantinha sempre anônima, eram esperadas naquele ano mais de cinco mil pessoas no local para assistir o grande show dos Gladiadores do Asfalto.
       Quando o sinal foi dado por um disparo de pistola .40, os pneus cantaram no asfalto, e teve inicio a mais arrojada competição do século XXI, onde os perdedores pagavam muito caro, as vezes com a própria vida, como no histórico Coliseu de Roma antiga. Não havia lugar para fracos ou perdedores. Varias baterias se enfrentaram. Algumas motos caíram, pegaram fogo, motoqueiros caíram mortalmente feridos, tudo sob os aplausos e gritos histéricos de uma platéia delirante. Faltava apenas a última bateria, a mais esperada.  Oscar Willis, apesar e ter sofrido a perda de dois garupas ainda continuava no pareo, para a grande disputa final. Quando os motoqueiros tomaram suas posições para a largada, Oscar Willis foi advertido por seu garupa e amigo inseparável Jhony que havia algo estranho naquela última bateria. O competidor que se postara para a largada não era o conhecido Marley Cilindrada que tinha conquistado sua posição com muita garra para a bateria final. Em seu lugar estava posicionado um motoqueiro desconhecido e estranho, cujo rosto não se deixava visualizar encoberto  pelo capacete com um  visor fumê espelhado, montado em uma moto cuja marca ou modelo eram desconhecidos de todos, porém transparecendo ser máquina de alta potência. Seu garupa igualmente parecia enigmático, com o rosto também coberto por um capacete igual ao do motoqueiro. O ronco do motor dessa máquina também era estranho. E a sua fumaça era preta, tinha com um odor forte de enxofre.
--Oscar, meu caro, olha esse motoca que vai disputar essa última bateria com a gente. Você o conhece?  Não lhe parece estranho?
--Não o conheço, mas deve ser alguém de outro estado ou até mesmo do exterior. Esse esporte anda ganhando adeptos em todo o mundo. Mas não se preocupe, meu velho, vamos derrubar os dois e ganhar esse troféu. Esse ano nem Satanás   vai estragar a nossa festa.  Seremos os  novos campeões dos Gladiadores do Asfalto/14. Não tenha medo, Jhony, vamos vencer!
--Mas... Oscar e essa fumaça com odor de enxofre também  não acha estranho?
--Deve ser algum maluco querendo envenenar o motor da sua moto misturando  combustível e algum aditivo a base de enxofre, o que eu particularmente não concordo, mas se o regulamento permite, nada podemos fazer. Volto a dizer, fique “frio” e vamos ganhar fácil mais essa prova.
      Nesse momento ouviu-se o disparo da pistola .40, dando início a última competição daquela noite.
          As motos roncaram seus motores e partiram em alta velocidade, frente-a-frente em sentido contrário. Quando já faltavam uns duzentos metros para o encontro final, o garupa Jhony falou pelo microfone de capacete com seu piloto:
--Oscar, não falei pra você? Veja só o que está acontecendo:  o motoca e seu garupa tiraram seus capacetes. Não são gente desse mundo, cara! Olha a cabeça deles. São esqueletos, são caveiras humanas! Estão dando risadas e soltando chamas  de fogo pela boca e pelo nariz. Suas motos também  vem pegando fogo, deixando um rastro de chamas pelo asfalto. A “lança-ponta” também está em chamas e sua ponta é de brasa.
     Não deu tempo para falar mais nada. Jhony foi atingido de cheio no peito pela “ponta-lança” que o transfixou, arrancando-o da grupa e ficando com ele pegando fogo e preso na vara. Oscar ainda atônito e sem nada entender, fez uma rápida manobra radical, voltando pra cima de seu  adversário. agora já sem o seu garupa. O estranho motoca e seu garupa também  voltaram dando altas e sonoras gargalhadas, soltando fogo por suas bocas e narinas, como se fossem dragões com suas motos incendiárias. Desta vez, o estranho garupa apontou e acertou sua “ponta-lança”  na cabeça de Oscar Willis, transfixando seu crânio e também exibindo-o dependurado na vara, onde permaneceu pegando fogo. A platéia em pânico tentava fugir daquele local, mas seus carros se chocavam. O tumulto se estabeleceu. Nesse cenário de carros que se chocavam, pegavam fogo, explodiam, gente que se pisoteava,  gritos de pavor, uma fumaça negra com forte odor de enxofre espalhou-se pelo ar.

PVH-RO, 13/08/14

segunda-feira, 21 de julho de 2014

A PEDRA DAKÁ

A PEDRA DAKÁ.
Samuel Castiel Jr
















               Tudo pode acontecer numa delegacia, principalmente quando é uma delegacia do interior. O delegado Homero ficou perplexo quando chegou a sua delegacia naquela manhã. Havia uma situação inédita esperando por sua decisão: dois desafetos haviam sido presos, foram as vias fato e conduzidos a sua delegacia por um motivo absolutamente insólido: uma pedra. A princípio achou que fosse uma pedra preciosa ou semipreciosa, que pudesse ter  algum valor de mercado. Mas não. Era uma dessas pedras comuns, chamadas de pedras-jacaré, usadas para construir baldrames de casas de alvenaria. E ainda estava suja, com alguns pedaços de terra agregados. Certo que aquele seu plantão seria mais um cheio de casos escabrosos, mandou que fossem buscar um dos brigões que estava detido.
--Como é o seu nome? –perguntou o delegado.
       Todo vestido de branco, calças e camisas folgadas e um colar comprido de conchas, sentou-se calmamente  a sua  frente e respondeu:
-- Sou Manelzinho de Orixá, doutor.
--O senhor quer me explicar que estória é essa de brigar por causa de uma pedra? O senhor quase matou o seu desafeto!
--Ele não vale nada, doutor! É um ladrão vagabundo.
--Calma seu Manelzinho! Não se esqueça que você está numa delegacia e não pode ficar aí espraguejando e desrepeitando as pessoas na frente do delegado. Posso deixar vocês dois detidos por mais tempo.
--Sim senhor doutor. Eu explico tudo: acontece que o lazarento roubou a pedra Daká que estava sob a minha responsabilidade e depositada no meu congá.
--O senhor quer me explicar que pedra é essa?
--Pois não doutor: a pedra Daká é uma pedra que confere poderes as pessoas para se tornarem Pais-de-Santo, ou seja, de abrir seus próprios terreiros, desde que sejam médiuns, é claro. Acontece que esse poder só pode ser dado, seguindo todo um ritual. E esse ritual prevê que uma pedra seja depositada no congá de um pai-de-santo reconhecido pela comunidade umbandista. Essa pedra fica ali no congá deposita por prazo indeterminado, até que o Pai-de-Santo responsável receba a mensagem para liberar tal pedra. Assim sendo, o novo Pai-de-Santo recebe a sua pedra e com ela  está autorizado a abrir seu próprio congá,  a praticar e presidir todos os atos e rituais umbandistas. Acontece, doutor, que essa pedra já estava no meu congá a quase um ano, porém eu não tinha recebido ainda a instrução do meu santo para entregar essa pedra a ele. O lazarento aproveitou-se da minha ausência, e como a casa estava toda fechada e sem ninguém, arrombou uma das minhas janelas, entrou em casa e roubou a pedra. Como eu já desconfiava desse elemento, fui atrás, botei o cavalo em cima e ele confessou o roubo. Aí eu perdi a cabeça e dei umas porradas nele. Mas como o senhor tá vendo,  ele mereceu.
            O delegado chamou seu ajudante Moi,  pediu que levasse o seu Manelzinho de Orixá de volta pra cela e trouxesse o outro brigão da pedra.
             Entrou na sala do delegado um elemento com andar e voz de malandro, camiseta regata e boné virado pra trás.
--Pronto, Chefia. As suas ordens! 
                 O hálito era de pura cachaça.
--Seu nome por favor.
--Alcides do Tarô, mais conhecido como Alcidinho.
--Pode contar sua estória seu Alcidinho.
--Vai fazer mais de ano que eu tô tentando pegar minha pedra Daká. Mas o infeliz do Manelzinho tá me matando na canseira. Querendo me fazer de trouxa, doutor. Já fui varias vezes a sua casa, mas ele só promete e não me atende. Não quer liberar a minha pedra. Acho que ele tem medo da concorrência, sabe? Não quer que eu tenha meu próprio terreiro. Fica com essa estória que ainda não recebeu instrução pra me liberar e nada. Mas na última vez que eu fui a sua casa, vi que não tinha ninguém e entrei por uma janela que estava só na tranca. Peguei a minha pedra Daká e fui embora. Não mexi em mais nada, juro pro senhor doutor. Só quero o que é meu. E essa pedra é minha! É através dela e de seus poderes que vou poder trabalhar no que é meu!...
           O delegado Homero mandou chamar o Manelzinho de Orixá e frente a frente com o Alcides do Tarô disse:
--Olha aqui vocês dois. Não vou mais continuar com essa conversa de doido. Também não vou manter vocês aqui presos por causa de uma pedra que não tem nenhum valor de mercado, portanto não configura crime no Código Penal Brasileiro. Mas eu juro que caso vocês voltem a brigar ou a se xingar por causa dessa pedra,  eu vou prender os dois por tempo indeterminado.
-- Moi, pode soltar esses dois, porém antes mande assinem o BO ( Boletim de Ocorrência ) bem como os seus respectivos depoimentos.
     Quando já ia saindo, o Alcides do Tarô perguntou:
--Doutor, eu vou poder levar a minha Pedra Daká?
-- Claro que não! Eu vou ficar com ela. É a  prova que ainda tem gente capaz de brigar e até se matar por causa de uma pedra sem nenhum valor. Vá-se embora  daqui seu Alcides, antes que eu me arrependa.
                  Passados alguns minutos olhando para aquela  pedra, o delegado Homero chamou o Moi, mandou buscar aquela marreta  pesada que tinha sido apreendida na sua delegacia, fruto  de um homicídio frustrado,   levou a pedra lá pros fundos da delegacia, e espatifou a pedra Daká sobre o solo.
-- Se pensam que acredito nessas estórias estão muito enganados. Já perdi muito tempo com essa pedra! – resmungou enfezado o delegado.
             No dia seguinte, o Moi chegou com a notícia que estava estampada nos Jornais: "Delegado de Policia capotou sozinho  em seu carro de forma inexplicável. Sua caminhonete particular pegou fogo,  teve perda total, mas felizmente o policial  sobreviveu.  Agora terá que  ficar por algum tempo fora de combate".
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PVH-RO, 21/07/14

sábado, 5 de julho de 2014

MACACO NA DELEGACIA

MACACO NA DELEGACIA


Samuel  Castiel Jr.

















         Quando o delegado chegou em seu gabinete naquela segunda-feira, o relógio marcava 7:30h e percebeu que algo incomum estava acontecendo: havia um macaco prego grande dentro de sua sala. O escrivão que  o esperava do lado de fora, apressou-se e correu para se explicar:
--Doutor, tem dois caras aí trancafiados no "chiqueirinho" que quase já se mataram por causa desse macaco. Aí eu resolvi prender o bicho  na sua sala pra ele não fugir, até que o senhor chegasse.
--Mas só faltava essa, Seu Tião! Olha só o que o bicho fez na minha mesa. Rasgou e jogou no chão os papeis que estavam sobre a escrivaninha, desligou todos os cabos do computador, mijou no tapete e quebrou o jarro com as flores. E cadê a minha caneta Mont Blanc?  Onde está? Não é possível, Seu Tião!
         Foi quando o escrivão Tião apontando pro macaco que gritava e pulava passando por cima das estantes:
--Olha lá chefe! A sua caneta está na boca do bicho.
         O macaco enfiava na boca e mordia nervosamente a caneta Mont Blanc do delegado.
--Olha lá o que você fez, seu imprestável! O bicho acabou com a  minha caneta preferida.
--Mas...
         Foi aí que o delegado teve uma brilhante idéia:
--Ô Tião, dá um jeito de prender esse macaco numa caixa ou mesmo dentro de uma dessas estantes que ele já quase destruiu.
--Um momento chefe. Vou pegar um cacho de bananas e já prendo esse infeliz.
         Voltou com uma penca de bananas e oferecendo ao macaco conseguiu prendê-lo dentro de uma das estantes, que previamente já havia esvaziado.
--Pronto chefe: o bicho está preso!
--Mande entrar os caras que estão brigando por esse macaco.  Um de cada vez. Primeiro o mais exaltado. Vou ouvir o que eles tem pra me dizer e, qualquer falta de respeito, meto os dois na cadeia.
--É pra já Doutor!
          O Tião voltou acompanhado de um homem baixo mas troncudo, usando roupas simples e folgadas, moreno claro e de chapéu de palha.
--Bom dia doutor! Meu nome é Abdias, seu criado.
--Sente-se por favor – disse-lhe o delegado sem olhar para ele e apontando para uma cadeira a sua frente. Que estória é essa de trazer um macaco prego pra minha Delegacia?
--Eu explico, Doutor: criei o meu Chico desde pequeno, quando sua mãe foi morta por caçadores lá no seringal Massangana, onde eu trabalhava. Foi preciso dar mamadeira na boca do bichinho, pois caso contrario teria morrido. Ele se tornou tão manso e apegado a mim, como se fosse meu filho. Faz mais ou menos uns dois meses que o meu Chico sumiu misteriosamente. Foi como  num passe de mágica: enquanto eu saí com a minha mulher e minha filha para irmos a missa, como fazemos todo domingo, alguém arrombou nossa porta, entrou lá em casa e levou o Chico de dentro do quarto onde ele ficava trancado quando todos nós precisávamos sair juntos  e ao mesmo tempo. Foi uma judiação seu Doutor. Até hoje minha filha e minha mulher mergulharam numa tristeza só! Nem comer querem mais. Até que ontem um vizinho lá da minha casa chegou com a  notícia que sabia o paradeiro do Chico. Levou-me até a casa desse infeliz que também  tá detido aí,  e eu avistei então o meu  Chico preso por uma corrente pela cintura e numa espécie de gaiola. Fiquei fulo da vida, fui tomar satisfação com esse ladrão de macaco. Aí foi que se deu a confusão, seu Doutor. O infeliz do gatuno se armou de um terçado, ameaçou cortar-me em pedaços caso eu tentasse levar o Chico. Discutimos, brigamos, quase fomos as vias de fato. Mas a sorte é que na hora os vizinhos que assistiam tudo telefonaram para 190 e rapidamente chegou a viatura com os policiais. Aí então vendo a confusão, resolveram trazer todo mundo pra cá pra Delegacia, inclusive o meu Chico.  Como era domingo, o escrivão disse que o senhor só voltaria na manhã de segunda-feira. Aí colocou o Chico na sua sala e deixou nós dois presos esperando no “chiqueirinho”, mas cada um na sua cela. Caso contrário, acho que eu teria esganado aquele ladrão de macaco!
--Calma seu Abdias, não se exalte nem fique falando essas coisas, caso contrário poderá perder a razão e eu terei que prendê-lo. Seu Tião, agora leve o seu Abdias, deixe-o ainda em sua cela,  e traga-me aqui o outro macaqueiro.
--É pra já Doutor!
            Quando  voltou, Tião trazia um homem negro, magro e alto, com roupas sujas e surradas, além de um boné com a aba voltada para trás. Parecia mais jovem que o seu desafeto.
--Dá licença Chefia?
--Tire o boné e sente-se nessa cadeira. Como é o seu nome?
--José Aníbal Carrazu, mas pode me chamar de Maranhão, que é como todos me conhecem.
--Conte pra nós que confusão que você se meteu por causa desse macaco?
--Doutor, esse macaco é meu, foi um presente da minha irmã que mora em Tarauacá, no Acre, pois ela se mudou pra outra cidade e não tinha com quem deixar o bicho. Aí eu aceitei ficar com ele, até que esse doido apareceu lá em casa dizendo que o macaco é dele. Mas o senhor não pode acreditar nas palavras desse sujeito. Juro que esse macaco é meu seu doutor!
--Olha aqui seu Maranhão, não venha com conversa fiada,  dizendo em quem eu devo acreditar ou não, caso contrário eu meto você e o outro macaqueiro na  cadeia. Esse macaco já aprontou demais aqui na minha delegacia, inclusive destruiu a minha caneta Mont Blanc.
         Nisso o macaco começou a gritar estridentemente preso dentro da estante. O delegado ordenou ao escrivão que fizesse o bicho calar.
--Mas chefe, acho que acabou a banana que eu dei pra ele. E não tem mais banana aqui na delegacia.
       Foi então que o delegado teve uma idéia. Pediu que seu escrivão trouxesse o outro preso.  E, frente a frente um do outro disse-lhes:
--Olha aqui vocês dois. Isso aqui é uma delegacia. Não é uma casa de doido. Prestem bem atenção no que eu vou dizer pra vocês. Como o macaco destruiu a minha caneta Mont Blanc, que é caríssima, eu não vou ficar no prejuízo. Aquele que primeiro  me trouxer outra caneta, da mesma marca, leva o macaco. Caso contrario, vou mandar esse bicho hoje mesmo para a Delegacia Florestal do IBAMA, e lá eles sabem o que fazer com esse mico.
       Virou-se e foi saindo. Já na porta avisou:
--Se vocês dois voltarem a discutir ou se pegar por causa desse macaco, juro que vão ficar na cadeia.  Tião, pode liberar esses dois.
       E foi embora para a  sala ao lado, onde uma outra oitiva já o esperava.
       No final da tarde, já cansado daquele expediente, o delegado já voltava para  sua sala, onde o macaco ainda continuava preso e gritando, quando  foi abordado pelo escrivão Tião que lhe disse:
--Doutor, um daqueles macaqueiros taí de novo e quer falar com o senhor.
--Se for lero-lero outra vez, vou mandar prendê-lo agora mesmo. Mande-o entrar.
--Pronto, doutor. O seu Abdias deseja falar com o senhor.
--Diga o que quer dessa vez.
--Doutor, eu tinha umas economias e dois carneiros lá no sítio, vendi tudo e comprei a sua caneta. Aqui está. Me disseram que é igualzinha a sua que meu Chico mordeu. Levei a caneta mordida e aqui está a outra, novinha em folha.
         O delegado chamou o escrivão Tião e mandou entregar o macaco para o Abdias. Tinha plena convicção que aquele era o legítimo dono do macaco.  Ficou ainda por algum tempo sentado em sua poltrona,  meditando e olhando para um livro colocado em sua mesa, cujo título era "Ensinamentos Bíblicos".  Foi  uma atitude salomônica, pensou.


PVH-RO, 04/07/14

quinta-feira, 26 de junho de 2014

TERROR NO AR

TERROR NO AR










          Quando a comissária anunciou que o vôo A 340-500 da Cingapore Airlines iria nos próximos minutos efetuar os procedimentos de decolagem, cujas portas já estavam no automático, virei-me para trás e constatei que aquele vôo estava completamente lotado. Sua rota era saindo de Dubai para Los Angeles, com uma escala em Singapura e duração de vôo das mais longas  da aviação internacional, de aproximadamente 17h e 35 min.,  num  super Airbus.
          Na próxima meia hora após a decolagem, concentrei-me nas nuvens que passavam rápidas cortadas por um dos mais modernos e avançados Airbus do mundo. Com os ouvidos sentindo a rápida altitude que ganhávamos, adormeci. Acordei com a voz de uma comissária de olhos orientais perguntando-me em inglês se aceitaria um lanche ou um drink.
--Um Martini Seco, Duplo com gelo, cereja e bastante soda, por favor. Fiquei ali me deliciando com aquele drink até que depois da comissária ter servido pela terceira vez comecei a me sentir mais leve e agradavelmente bêbado. Adormeci Acordei com alguns gritos que vinham lá de trás do avião. Era uma voz enérgica de homem, falando um inglês arrastado,  mas também gritava e bradava em  japonês. Quando olhei pra trás não entendi nada: um ninja vestindo roupas negras e com o rosto parcialmente coberto, gritava e fazia gestos ameaçadores, portando duas pistolas, uma em cada mão. Outro ninja saiu do toalete da frente da aeronave, portando um sabre e também gritando impropérios, com gestos ameaçadores. Tinha feito uma comissária refém e numa gravata de pescoço arrastava-a pelo corredor da aeronave. Houve então ao mesmo tempo um misto de espanto e perplexidade coletivos. Ordenou que todos baixassem suas cabeças se não quisessem que elas fossem decpitadas.
__ Sou Dakufaiã Haráchi e meu companheiro é o  discípulo mais aplicado que já tive, Hattori Hanzo. Somos ninjas dos mais elevados dans. Estamos lutando  em nome do Japão, contra a política expansionista chinesa. Não queremos nem aceitamos que os membros da Asean (Associação de Nações do Sudeste Asiático) sejam tratados como idiotas e ludibriados e ultrajados pelo poderio imperialista da China. Por isso, declaramos este vôo seqüestrado e refém da nossa luta, até que as autoridades chinesas se sensibilizem por nossa causa.
         Ainda com a cabeça zonza dos drinks e sem querer acreditar no que estava acontecendo a 12.000 m de altitude,  pus-me a pensar: Porque ninjas? Quem são os ninjas? Pelo que li e aprendi como Historiador e Pesquisador de Civilizações Antigas, disciplina que lecionava  como Fellow na Universidade de Tóquio, os ninjas são guerreiros japoneses, também conhecidos como assassinos das sombras tanto pelas suas vestes escuras como também pelas estratégias silenciosas, furtivas e ardilosas para surpreender e  matar seus inimigos. Tiveram sua origem na idade média, pelo que se sabe  surgiram no reinado de Shotoku (718-770) tendo se difundido por todo o Japão durante o período conhecido como Sengoku (1467-1568). O Japão atravessava um período de  guerras civis, e as técnicas ninjas começaram então a ser adotadas por famílias que habitavam as montanhas no centro da ilha de Honshu, a maior do país. Quando havia necessidade, as famílias se uniam para enfrentar inimigos comuns. Praticamente desapareceram entre os anos de 1603 a 1.868, no chamado período Edo, quando acabaram-se as guerras e conflitos internos. Nessa época, os ninjas foram perseguidos pela sociedade feudal vigente, sendo submetidos a taxas e impostos exorbitantes. Os principais inimigos dos ninjas eram os samurais, que ajudavam a manter o poder dos senhores feudais. No período seguinte, iniciado pelo império de Meiji, em 1868, tanto ninjas como smurais foram proibidos de usar armas, pois o objetivo do imperador era integrar o país a era moderna e ao resto do mundo. No início do século XX, entretando, os ninjas voltaram a ser usados durante a ocupação da Manchúria, pelo Japão. Na época atual, além das telas do cinema em Hollywood, acredita-se que os ninjas ressurgem, eventualmente, como mercenários ou lutando por causas geopolíticas de países orientais. Mas, o que fazer agora com esses ninjas loucos seqüestrando nosso avião e ameaçando matar todos nós? Afinal que nós tínhamos a ver com essa causa expansionista da China?  Enquanto meus pensamentos rebuscavam a história desses, ouvimos a voz do comandante anunciando que o avião estava realmente  seqüestrado e desviando sua rota oficial, sob ameaça de ninjas mercenários. Pedia ainda que mantivéssemos a calma que tudo poderia acabar bem. A seguir o silêncio instalou-se, quebrado apenas pelos gemidos e suspiros roucos da pobre comissária, mantida sob a “gravata” de braço apertada de um dos ninjas seqüestradores. Alguns minutos se passaram quando gritos histéricos foram ouvidos lá atrás da aeronave. Era uma mulher vestindo burca preta, com o véu encobrindo quase todo o seu rosto, e que, partindo pra cima do ninja, com gritos histéricos e falando impropérios em árabe, tentou esganar o ninja. A explosão que ouvi foi o disparo de uma das pistolas do ninja. A bala zuniu e acertou a cúpula do Airbus, fazendo com que houvesse uma imediata despressurização  e as máscaras de oxigênio caíssem. O gigantesco avião mergulhou num vácuo que pareceu não ter mais fim. O segundo disparo acertou a perna na mulher de burca, jogando-a a distância no chão. Houve um momento de pânico, com gritos histéricos que vinham de quase todos os assentos. A calma voltou a ser restabelecida com a voz do comandante novamente pedindo que todos permanecessem calmos e tentassem manter o equilíbrio, pois caso contrário as conseqüências poderiam ser bem piores. O ninja que atirou na mulher tornou a avisar que qualquer outra tentativa de desarmá-lo seria fatal para todos. A mulher de burca preta continuava gritando e praguejando no chão, com a perna quebrada e perdendo muito sangue. O ninja pegou o megafone e perguntou se havia algum médico no vôo que pudesse atender aquela mulher árabe, acometida de um ataque histérico e que certamente estava servindo para mostrar como os seqüestradores não estavam blefando. Foi aí que eu registrei uma das cenas que jamais vou esquecer: um médico judeu de kipar na cabeça, levantou-se de seu assento e dirigiu-se para a mulher árabe caída no chão da aeronave. Todas as diferenças milenares entre seus povos tinham que ser esquecidas em favor da vida. O médico se ajoelhou perto da mulher, tirou um lenço branco  do seu bolso e com ele  fez um torniquete na tentativa de estancar a hemorragia. A seguir, levantou-a com delicadeza e a carregou em seus braços  de volta  para seu assento, fazendo com que ficasse deitada em sua poltrona, com as pernas elevadas.
        O Airbus voava baixo e podíamos ver lá embaixo a imensidão azul do oceano índico. Voamos assim por mais ou menos uma hora, quando percebi que havia  um certo nervosismo dos ninjas seqüestradores. Olhando de soslaio pela minha janela, percebi que estávamos sendo seguidos por aviões caças chineses. Tive um sensação estranha, pois algo me dizia que nosso fim ou nossa salvação estavam próximos.  A voz do comandante voltou a ser ouvida, anunciando que os chineses detectaram o desvio súbito de rota do Airbus e estavam com caças seguindo nosso vôo. Teria sido o celular de uma criança, que não foi recolhido pelos seqüestradores, e que transmitiu uma mensagem  feita por sua mãe relatando o seqüestro. Nesse momento saiu da cabine o terceiro ninja com o sabre encostado no pescoço do comandante. Aos gritos falou algo ameaçador, gesticulando e, pelo que entendi, ameaçando cortar o pescoço do comandante. Fazendo gestos com suas mãos, o comandante mais uma vez pediu calma a todos. Usando um megafone que lhe foi entregue, o comandante mesmo com o aço frio do sabre em seu pescoço,  explicou que o seqüestro fora descoberto pelo serviço de inteligência chinesa, a qual por via  satélite, localizou a aeronave seqüestrada e determinou sua interceptação através de seus caças. Todos precisariam ter bom senso, ou seja, os passageiros e tripulantes, bem como os guerreiros ninjas também, que deveriam fazer uma avaliação da situação. O comandante se oferecia para ficar como refém dos ninjas e tentar uma negociação que fosse melhor para os seqüestradores, quem sabe até mesmo livrando-os da pena de morte, imposta  pelo governo chinês para tais crimes, considerados hediondos. Houve uma rápida e ríspida troca de palavras entre os ninjas, acho que num dialeto japonês  arcaico, pois nada entendi. A seguir uma explosão quase me matou de um ataque cardíaco e uma espessa nuvem de fumaça branca  encheu o ambiente. Quando eu pude enxergar alguma coisa a minha frente, fiquei sem entender nada: os ninjas tinham sumido do corredor do avião.  Também não estavam na cabine de comando nem nos lavatórios do avião. A mulher da burca preta continuava sentada, gemendo,  com as pernas elevadas, o torniquete improvisado com o lenço branco do médico judeu e sangrando menos.  A comissária que juntamente com o comandante  virara refém permanecia lívida e estática, em pé e em estado de choque no corredor do avião. O odor de pólvora impregnava o ar. Onde estariam os seqüestradores ninjas? A voz do comandante voltou a ser ouvida anunciando que o avião estava em segurança, bem como o co-piloto e todos a bordo. O Airbus estava sendo monitorado pelos caças chineses e retomando sua rota original, devendo em algumas horas fazer um pouso estratégico num aeroporto próximo a Singapura, quando a aeronave seria rigorosamente vistoriada e inspecionada pela polícia e por outras autoridades chinesa.
       Sempre soube de feitos misteriosos, mágicos ou mesmo sobrenaturais praticados por esses guerreiros conhecidos por ninjas, mas o que se passou naquele vôo e o enigmático  sumiço que aqueles seqüestradores tomaram, desaparecendo na fumaça, ficou comigo para sempre na conta do absoluto imponderável.


PVH-RO, 26/06/14