quinta-feira, 27 de maio de 2021

 


O RETORNO 

Samuel Castiel 

            


            


                       
               Ela estava exausta! Andara a noite inteira pela escuridão. Muitas vezes achou que ia desmaiar. Estava com os pés inchados, cheios de calos, com bolhas d'agua e ferimentos. E, chegou a pensar um dia que ia finalmente ser feliz depois que aquele maldito marido se foi. Mas, sabe como é seu doutor, vida de roça não é fácil não! E principalmente quando se está sozinha! Livrei-me daquele traste, livrei-me das surras que ele me dava e agradeci a Deus o dia que ele resolveu ir embora. Não vou dizer que, de vez em quando, não senti falta do seu aconchego de macho, porque estaria mentindo. Afinal, ninguém é de ferro!... Mas, um dia ele voltou! Cheio de promessas foi ficando e ficou. No início correu tudo bem. Até que ele ajudava - não nego! Mas aos poucos não saía mais da rede, com a garrafa de pinga ao lado. A noite quando eu voltava da roça, lá estava ele bêbado e com muita fome...Esquentava sua comida ouvindo ameaças e seus xingamentos! Quando foi ontem, Doutô, ele tava pra lá de bêbado, sentado na cama. Já tinha tirado o cinturão pra me bater. -- Vitorina, sua filha-da'puta! Traz logo a porra desse jantar ou eu vou te dar outra peia sarada!... 

---Vou te quebrar no cinto! -- 

---Tá aqui sua sopa Ambrósio! 

                Ele encheu a colher e engoliu. Na sequência atirou o prato que se espatifou contra a parede! -- Sua vadia! Vai esquentar direito essa sopa ou eu te mato de porrada!!! 

-- Juro pro senhor, Doutô: quando eu voltei, ele tava estirado na cama, roncando, dormindo de peito pro ar e espumando pelos cantos da boca! Foi então que eu resolvi sair correndo e andei a noite inteira mata a dentro pra chegar até sua Delegacia. -- Eu juro que se eu tivesse ficado lá, ele ia me matar. 

-- E agora, o que que eu faço Doutô?!...

sábado, 8 de maio de 2021

A VACINA

 Samuel Castiel 



Em época de pandemia tudo fica mais difícil, mas principalmente para o idoso. Depois de uma quarentena cruel e monótona, o idoso já se encontra no seu limite físico e mental. Sente dores em todos os músculos e articulações. As artroses e artrites quase os matam. A mente entediada começa a dar sinais germânicos do Alzheimer. Mas, como está no grupo de risco, tem a gloria de ser do grupo prioritário. E assim consegue tomar a primeira dose. Porém, em que pese a sua satisfação pessoal, na realidade, tudo continua igual:  tem que continuar no isolamento social, usar álcool em gel, tomar os polivitamínicos e ferro todos os dias. Mas, finalmente, sua esposa também idosa, claudicante e cheia de limitações articulares, chega com a notícia:

--- Oriovaldo, vamos levantar bem cedo amanhã pois é o dia da nossa segunda dose. Finalmente, ficaremos imunes ao corona.

     Às 5 horas da manhã o casal de idosos se levanta, e se prepara para sair tomando apenas um café às pressas, pois a fila deverá  ser longa!

     Ao chegar no local, a fila já dobrava o quarteirão. Os velhinhos, velhotes  e velhões, todos com máscaras e conversando animadamente como se fossem receber a senha para o céu! Alguns com os olhares indecisos, perdidos, a maioria  de óculos escuros, bengalas ou cadeiras de rodas, mas sempre bem falantes e claudicantes. Uma visão interessante não fosse trágica! Ter que passar por mais essa no declínio de toda uma existência!...

     Mas o pior ainda estava para vir para o seu Oriovaldo e sua esposa!

 ---O senhor vai nos desculpar, seu Oriovaldo, porém a vacina acabou!!!