sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

TRATAMENTO ALTERNATIVO

TRATAMENTO ALTERNATIVO

Samuel Castiel Jr




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                   “As coisas não são absolutas, elas existem dependendo da percepção de cada um”

                    ( Paulo Coelho )




        Não acreditava em bruxas nem em feitiços. Também não tinha religião. Era agnóstico. Solteirão e independente, até que um dia, por se  encontrar indisposto, sem apetite e sem ter melhora com os remédios que vinha tomando por conta propria, começou a ficar intrigado com a sugestão de algumas amigas que insistiam em que o seu mal-estar nada mais era do que “mal olhado” ou trabalho que algum desafeto teria lhe jogado.  Não foi preciso muita insistência para sua amiga Diná levá-lo a uma benzedeira.
-- Vamos lá, Carlão! Dona Cotinha é a melhor de todas. Já trabalha a anos, tem experiência com todo tipo de mal olhado e já curou muita gente!
             Dona Cotinha realmente era muito respeitada pelos trabalhos prestados a comunidade. Crianças, jovens e velhos, todos a procuravam com os mais diversos problemas. Dona Cotinha, depois de examiná-lo, com sua fala mansa disse:
-- Meu filho, vou precisar rezar com a mão em sua cabeça, pois você tá com um grande “mal olhado”!  
    Pegou um ramo que depois Carlão ficou sabendo tratar-se de arruda. Benzeu, rezou, sempre molhando o ramo de arruda na água benta de uma bacia. Depois pegou um pedaço de barbante e disse ao Carlão:
-- Carlão, meu filho, além do “mal olhado”, você também tá com “espinhela caída”. Vou livrar você também desse mal! Tenho uma boa reza pra isso, nunca falhou!
     Com o barbante, mediu a circunferência de sua cabeça, depois a distância entre seus ombros e também a distância que vai da base do pescoço até a boca do estômago.
      Carlão já estava ficando impaciente, mas ela concluiu:
-- Tinha certeza! Essa cara e essa moleza nunca me enganaram!
      Rezando, benzendo e fazendo o sinal da cruz com o polegar da mão direita, ia de sua testa até a boca do estômago. Depois puxava a pele com os dedos, desde a base do pescoço até o umbigo. Fez isso por uns dez minutos, até que a pele do Carlão já estava vermelha e quente. Depois pediu a ele que rezasse três Ave-Maria e três Pai-Nosso e o liberou. Carlão saiu de lá se sentindo mais leve. Ficou matutando quem teria olhado mal para ele? E a “espinhela caída”? Que negócio mais estranho!...
        Depois de algum tempo de bem-estar, Carlão voltou a ficar incomodado. Tudo pra ele estava dando errado. Até perdeu o emprego de tantos anos na Caixa Econômica. Sua poupança começou a minguar. Foi quando  outra vez apareceu sua velha amiga Diná:
-- Meu amigo Carlão, esse azar todo em cima de você só pode ser um “descarrêgo”. Vou levá-lo a um centro e você vai sair de lá outro homem.
    Carlão concordou e foi. O nome do médium era Ormiro de Ogum, vindo direto da Bahia. Jogava cartas e Buzios, também era vidente. Aproximava ou distanciava pessoas. Já tinha casado muitas pessoas que não tinham mais esperanças no amor. Também andou fazendo trabalhos pra “descasar”. Mas sua linha era branca, recusava trabalho pro mal. Já tinha atendido e aconselhado vários políticos que sempre o procuravam. Quando olhou pro Carlão, mandou que se sentasse e foi logo dizendo:
-- Home, tu tá carregado mais que mangueira depois da floração! Parte esse baralho – ordenou. Vixe! É a carta de uma mulher que vai se aproximar de você. Mas não se avexe, ela é do bem. Acredite e essa  mulher pode lhe trazer muita sorte. Vou preparar um banho especial de “descarrêgo”pra tirar esse carma que jogaram em você. Você deve tomar esse banho na última sexta-feira do mês. Mas repito, fique atento que esse “rabo-de-saia” vai aparecer na sua vida. E tenho certeza que é disso que você tá precisando!...
          Carlão foi pra casa sem muitas esperanças mas, por via das dúvidas, guardou a garrafada do banho para o dia certo. Tomou o banho como lhe fora recomendado e ficou ansioso a espera do resultado. Os dias do Carlão aos poucos  começaram a ficar melhores. Deitado e se embalando na rede da varanda de sua casa, ficou pensando como as coisas tinham melhorado em sua vida. Conseguiu um novo emprego, ganhando até bem mais do que o seu antigo emprego na Caixa. Estava bem de saúde, disposto e realmente nada tinha a reclamar. Sua mulher era carinhosa, fogosa, cuidava bem dele. Não entendia porque passou tanto tempo pra enxergá-la. Foi preciso um tratamento alternativo para que sua vida tomasse um outro rumo e ele encontrasse finalmente o seu grande amor.
         Era um domingo quente, com um sol forte de verão. Consultando o seu relógio Mido Automatic Baroncelli, chamou sua esposa com quem se casara recentemente:
-- Diná, querida! Prepara meu drink de Martini com Soda e traz aqui pro seu Carlão. Mas põe pouco gelo, tá!?...


PVH-RO, 27/12/13

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Dr. FRED'S KOLL

Dr. FRED’S  KOLL

Samuel Castiel Jr.










       "  Quase todos os médicos têm a sua doença preferida  "

             Henry Fielding




     Era baiano, mas descendente de eslavos. Formou-se em medicina pela Universidade Federal da Bahia. Tinha perdido  sua esposa precocemente, com quem não chegou a ter filhos. Mas não ficou viúvo por muito tempo. Casou-se logo com outra mulher bem mais jovem, que lhe deu vários filhos homens, porém nenhuma mulher. No hospital onde trabalhava era muito conhecido por ser um médico muito inteligente, porém muito polêmico e turrão. Tornara-se perito do Instituto Medico Legal (IML) e vez por outra era designado pela Justiça para fazer exumação de cadáveres, serviço que detestava. Com o passar dos anos entregou-se a bebida e tornou-se alcólatra.  Inicialmente só bebia whisky, mas depois teve que beber cerveja e nem sempre das melhores. Quando começava beber  não tinha horário para parar. Dentre tantas esquisitices, também não gostava de pagar a conta do que bebia. Quando não aparecia nenhum conhecido para pagar sua conta, levantava-se na cara de pau, bem duro, parecendo que tinha engolido uma espada e ia saindo. Não adiantava o garçon  ou o  dono do boteco chamá-lo, pois ele não olhava nem pra trás. Ainda bem que só bebia em botecos cujos proprietários já o conheciam. Anotavam a despesa e cobravam quando ele reaparecia sóbrio.
         O verão estava no auge, com muita poeira em suspensão no ar que se juntava a fumaça das queimadas, fazendo arder nossos olhos e tornando a visibilidade difícil mesmo para pequenas distâncias, ficando complicado e perigoso para os motoristas de automóveis, motos, caminhões e carretas. Alguns voos de aeronaves comerciais eram forçados a desviar suas rotas para aterrisar em aeroportos de capitais vizinhas.
          Naquele final de semana, o Dr. Fred’s Koll tinha tirado plantão na sexta-feira e no sábado resolveu beber. Chegou ainda pela manhã no boteco e pediu uma cerveja estupidamente gelada, “canela-de-pedreiro” – como dizia. Não precisava de companhia. Bebia sozinho. Se aparecesse algum incauto e se dispusesse a ouvi-lo, tudo bem. Caso contrário entrava mudo e saía duro, rígido e calado! Também não gostava de ninguém perturbando ou contando mentiras em sua mesa. Apenas os mais conhecidos eram tolerados na sua mesa. Tinha uma cara muito fechada e séria. Era de poucas ( quase nenhuma ) palavras.
              Não fazia uma hora que ele chegara ao bar, quando pára bem a sua frente uma ambulância. Estava sentado sozinho naquele boteco da periferia da cidade, onde ainda não havia quase ninguém, a não ser um casal que discutia em voz alta, pois o malandro ainda não tinha voltado pra casa. Não adianta beber em bar da periferia – pensou. Sempre acabam me encontrando!
               Salta da ambulância um enfermeiro todo de branco, que ele tanto conhecia:
--- O que houve, Zacarias? Como é que você me encontrou aqui, home de Deus?! E tem mais: tô de folga, saí do hospital a poucas horas!
---Desculpe Dr. Fred’s. Sei que está de folga mas é uma emergência! Um ônibus perdeu o controle e capotou na BR-364, já quase chegando a cidade. O diretor do hospital pediu que viesse buscar o senhor, pois pelo que sabemos existem mortos e feridos graves. O hospital está chamando todos os médicos do corpo clínico para prestar socorro as vitimas desse grande desastre. O senhor tem que ir lá comigo, na ambulância, agora, pra identificar os mortos e mandar os feridos para o hospital.
            O Dr. Fred’s levantou-se e saiu duro, rígido, mal humorado e nem olhou para trás, onde o dono do boteco e o garçon insistiam em chamá-lo para pagar a conta das cervejas já consumidas.
            Chegando ao local do acidente, a cena parecia mais um campo de batalha, depois do massacre. Corpos atirados em todas as direções. Choros, gemidos e gritos pedindo socorro. Muitos curiosos se aglomeravam no local. O Dr. Fred’s foi abrindo caminho, afastando as pessoas e falou para o enfermeiro:
---Zacarias, pega a sua prancheta e a caneta e vem comigo. Vou identificando, examinando e passando os dados pra você.
---Ok Dr.
              E começou o serviço:
---Pedro Farias Damasceno: fratura do braço esquerdo e provavelmente da coluna lombar. Imobilizado mas estável.
---Epifânio Silva: desacordado, sangrando pelo ouvido direito. Provavel traumatismo cranioencefálico (TCE) grave.
---Florinda Torres: ausência de sinais vitais: morta!
          Depois de declarar mortos uns cinco ou seis, o Zacarias chamou:
---Dr., o senhor falou que esse aqui tá morto mas ele se mexeu agorinha!...
           O Dr. Fred’s Koll parou a inspeção e, olhando feio e sério para o Zacarias perguntou:
---Ô Zaca, quem é o médico aqui?
---É claro que é o senhor, Dotô!
---Então quando eu disser que tá morto é porque tá morto!!!
---Mas...

Nota do Autor:  Qualquer semelhança com lugares e personagens deste conto, terá sido mera coincidência.


PVH-RO, 12/13/13

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

O ESTOURO DA BOIADA

Samuel Castiel Jr.
















O que rouba a confiança dos homens é o maior dos ladrões”.




        Muitos o chamavam de Rei do Gado, alcunha que, na verdade,  não o deixava muito confortável. Sua fazenda estendia-se por extensa planície de pasto verde que se perdia no horizonte. Ficava muitas vezes a admirar aquele pasto por horas a fio. Eram mais de três mil cabeças de nelore que pareciam decorar aqueles campos verdes. Indiscutivelmente, Zezão era um fazendeiro bem sucedido.
        Bem lá no fundo da fazenda havia um grande lago, onde o rebanho se refrescava e bebia água nos dias quentes de verão. Alguns búfalos selvagens também ficavam por ali, pois não costumavam misturar-se com o rebanho dos bois brancos. Zezão não gostava muito daqueles búfalos mas deixava que eles ficassem por lá, pois não representavam nenhuma ameaça para sua fazenda. Muitas vezes ficava intrigado de ver como esses animais tratavam seus filhotes. Os machos pra apressar o desmame batiam covarde e grosseiramente nos bezerros, ao ponto de muitas vezes matá-los. Um búfalo adulto chega a pesar meia tonelada. É um animal colossal! Mas, tirando essas esquisitices, não incomodavam o rebanho de nelore. Zezão tinha cerca de cem peões na fazenda, entre boiadeiros, vaqueiros, motoristas de caminhões-gaiolas, tratoristas, etc. Esses peões eram escolhidos a dedo e contratatos pelo próprio Zezão, após uma longa entrevista. Tinha que ser gente de confiança e com habilidade para lidar com o manejo do gado. No último verão contratara mais uns vinte peões, vindos na maioria do sul do Pará e também do Mato Grosso.  Precisava de gente pra vacinação e marcação  do rebanho, além da atividade leiteira, o que envolvia um contingente considerável de mão de obra. Dentre aqueles homens que havia contratato ultimamente, Zezão não tinha gostado muito especialmente de um deles, mas por ter experiência como vaqueiro de grandes pastos, o contratou. Pancho Bêni era um peão da fronteira do Brasil com o Uruguai. Vinha com a experiência de manejo com o gado de corte e de leite. Por isso Zezão o contratou. Mas seu jeito e seu olhar não  agradavam ao Zezão, pois lhe pareciam sempre furtivos. Parece que está sempre escondendo alguma coisa – chegou a comentar com seu capataz, o João Ferreira. O tempo foi passando até que começaram a surgir notícias de roubo de gado nas fazendas vizinhas. O capataz João Ferreira, homem da mais irrestrita confiança de Zezão, já tinha comentado com ele que também não gostava nem um pouco do olhar e do comportamento do Pancho Bêni, vulgarmente conhecido como Sansão, pelos cabelos longos que usava. Estava sempre cochichando com outros peões.
---Se eu pegar algum ladrão de gado na minha fazendo vou enforcá-lo, como no velho oeste americano. Eu juro que o enforco! –dizia Zezão.
           O inverno chegara e com ele as chuvas e tempestades,   com ventos muito fortes.
            Naquela noite havia vários lotes do rebanho separados por divisórias de corda, pois no dia seguinte os caminhões-gaiolas levariam cerca de quinhentas cabeças para serem vendidas a um frigorífico na Capital.
             Era quase meia noite e o silêncio da madrugada que se aproximava, só era quebrado pelo mugido melancólico do gado, como um pranto de dor. As silhuetas de três homens montados a cavalo surgem na escuridão. Vinham sem pressa e em silêncio, sem trocar nenhuma palavra. Parecia que tudo já estava ensaiado e decorado. Aproximaram-se do rebanho previamente selecionado e que só esperava o dia amanhecer para ser transportado ao frigorífico. O vento começou a soprar forte e os relâmpagos e trovões anunciaram a chuva que já começava a cair em pingos fortes. O gado começou a mostrar sinais de inquietação e agitação. Os três homens desceram então de suas montarias e se aproximaram do gado. Tinham que cortar as amarras de cordas que separavam os lotes. A chuva ficava cada vez mais forte. Os relâmpagos e trovões cruzavam os céus. Os homens usando capus, chapéus e capas de chuva trabalhavam freneticamente cortando as cordas dos lotes de nelore, até que um forte relâmpago cruzou o céu e o raio atingiu de cheio uma castanheira que se partiu ao meio, produzindo um estampido forte e agudo, com se fosse o  tiro de um canhão gigante que se perdeu na mata. Foi esse barulho assustador que provocou o estouro da boiada. O gado assustado parecia obedecer ao comando de um líder que ia na frente, numa louca e cega corrida, quebrando e passando por cima de tudo que estivesse a sua frente. Não deu tempo dos ladrões de gado chegarem até seus cavalos, que saíram desembestados, relinchando em desabalada carreira, deixando pra trás seus montadores. A manada enlouquecida só começou a parar no fundo da fazenda, próximo ao riacho, onde ficavam os búfalos, que também já davam sinais de inquietação.
             As cinco e trinta da manhã o capataz da fazenda João Ferreira acordou Zezão para dar-lhe a notícia:
---Patrão, os gatunos de gado visitaram sua fazenda!
---Miseráveis filhos da puta! Não respeitaram nem a forte chuva com temporal que caiu a noite inteira.
---É verdade patrão! Eles não costumam respeitar nada. Mas dessa vez se deram mal e levaram a pior: houve um estouro da boiada provocado por um raio e eles foram pisoteados e mortos pela manada.
---Não me diga, home de Deus!
---É isso mesmo que  está ouvindo, patrão! O senhor não vai precisar gastar suas cordas para enforcar esses malditos! Estão todos mortos e pisoteados. Mas quero que o patrão venha comigo até lá, pois precisa ver uma coisa.
      Ao chegarem perto dos corpos, João Ferreira se abaixou e puxou com força o capuz de um deles:
---Veja, é o Sansão, Chefe! Ele e mais dois comparsas. Tiveram o fim que mereceram. Estão quase irreconhecíveis.
---É verdade, João Ferreira. Vou economizar minhas cordas –disse Zezão. Virou-se e montou em seu cavalo.
---Vamos lá, meu fiel capataz! Faça o que tem que fazer. Depois vá até a casa grande. Vou mandar preparar uma limonada pra nós. Hoje o dia vai ser muito quente.
      E saiu trotando em seu “puro-sangue”. Ia pensando consigo mesmo: é como dizia meu velho pai: ladrão que rouba gado pode um dia ser chifrado. E acrescentou: ou pisoteado. E foi-se embora.


PVH-RO, 09/12/13 

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

UM SANTO REMÉDIO

UM SANTO REMÉDIO
Samuel Castiel Jr.









"O ciumento acaba sempre encontrando mais do que procura."
( Madeleine de Scudéry )


         As primeiras namoradas são as que mais despertam ciúmes. E muitas vezes encontram verdadeiros paladinos, capazes de cometer loucuras por elas.  Muitos homicídios ainda continuam sendo registrados e creditados por conta de um  cego e tresloucado ciúme.
         Era um verão ensolarado, quente e de muita poeira na minha querida Porto Velho. Estavamos no mês de junho e as quadrilhas, arraiais e boi-bumbás animavam nossas noites. Pedro Struthos sempre foi um amigo dileto, desde a doce adolescência quando fundamos e defendemos as cores de um time de futebol de salão (futsal) o saudoso e aguerrido Santa Cruz Futebol Clube. O Pedro tinha um pai muito conservador, porém de bom senso. Quando soube que o seu filho estava pretendendo naquela sexta-feira ir ao arraial da igreja do Rosário, cujo pároco chamava-se João Feio, condicionou seu consentimento se ele fosse na minha companhia, uma vez que sempre me considerou uma das melhores amizades de seu filho Pedro. Entretanto, tínhamos que voltar pra casa até no máximo meia noite. Tudo combinado, com alguns trocados no bolso, saímos para a noitada no arraial. Lá encontramos com a minha namorada que estava acompanhada de algumas amigas. Como todos éramos bons amigos, o clima entre nós ficou ótimo. Meu amigo Pedro estava de olho em uma dessas amigas, porém nada me disse. Acontece que, dentre essas amigas da minha namorada, estava uma que terminara recentemente seu namoro, quase noivado, deixando o Dudu, seu ex, decepcionado e furioso, pois ela insistia em não mais reatar aquela relação. Enquanto  nosso grupo se divertia no arraial,  jogando boliche,  pescaria de presentes e no “tiro-ao-alvo”, eis que o ex-namorado nos viu e, achando que sua ex estava dando mole pro meu amigo Pedro, veio tomar satisfações. Xingou o Pedro, disse-lhe um monte de desaforos em voz alta, quis bater na moça. Foi aí que apareceu o paladino da moça. O Pedro tirou seu relógio do pulso, pediu-me que afastasse as moças e saiu no soco com aquele enlouquecido ex-namorado, que não acreditava ser a outra a sua pretendida. Não acreditava que a sua ex-namorada apenas estava no grupo de amigos, sem namorar ninguém, muito menos com o Pedro. Soco pra cá, soco prá lá, eu tentei e consegui apartar aquela briga sem sentido. Mas acontece que o Dudu estava bêbado, tentando afogar suas máguas  no copo para esquecer seu  grande amor. Apartei a briga, fiz os dois brigões apertarem-se as mãos, pedirem desculpas um para o outro e continuamos nossa diversão visitando os jogos e brinquedos daquele arraial. O Dudu brigão foi embora, os curiosos também. Já  tínhamos quase nos esquecido da briga quando se aproximou uma bicicleta, vindo por trás do nosso grupo. Vinha com velocidade. Pedalando com força vinha um outro conhecido nosso, Aluizio e trazia na garupa o Dudu. Quase não deu tempo para avisar o Pedro. O Dudu saltou em cima dele e os dois rolaram pelo chão, caindo numa vala profunda que ficava a margem daquele local. Os dois rolaram agarrados um no outro, desferindo socos e ponta-és. O Aluizio que vinha pedalando a bicicleta, impediu-me de tentar apartar de novo aquela briga. Os dois tinham que resolver aquela situação na porrada –dizia ele, com bafo de cachaça. Os dois  brigaram no fundo da vala até quando chegou a polícia e botou um fim naquela briga de rua, presenciada lá de cima por curiosos que se aglomeravam para ver tudo do melhor ângulo, ora aplaudindo, oram vaiando. Acabada a luta, cada um foi pro seu lado. Juntei o que tinha sobrado do meu amigo Pedro: um olho roxo, vários hematomas pelo rosto e pelo corpo e todo sujo de lama fedorenta. O Dudu também ficou muito amassado! Fomos andando pra casa, relembrando aquela briga por um motivo banal. Afinal—dizia o Pedro para a ex-namorada ou noiva do Dudu, não era nem em  você que  que eu estava de olho. Alguma das garotas propôs que todos fossemos pra casa de uma delas pra fazer limpeza e curativos no Pedro. Concordei mas olhei no relógio, e já era quase meia noite. Fizemos a limpeza dos ferimentos, lavamos os hematomas, mas o rosto do Pedro continuava horrível, inchado e com aquele olho roxo, quase fechado. A dona da casa propôs então que colocássemos um bife cru de carne bovina em cima do olho roxo do Pedro.
---É um santo remédio, dizia ela.
            Foi lá pra dentro da casa e voltou com um bife.
---Pedro, meu filho, esse bife é o único que tenho na geladeira e já estava até temperado, mas eu o lavei bastante na torneira. Coloque-o em cima do seu olho machucado e vai ver como logo fica bom.
          O Pedro pegou bife e o colou em cima do seu olho esquerdo. O cheiro do tempero ainda estava forte e o coitado do Pedro ficou parecido com um pirata que tivesse tido  seu olho enucleado. Depois de mais ou menos meia hora, sugeri que o Pedro tirasse aquele  bife ridículo do olho para ver o resultado, até porque estava ficando muito tarde pra gente voltar e o seu pai certamente já estaria impaciente. Quando ele tirou, a decepção foi total! O olho do Pedro parecia mais roxo.
---Acho que ficou foi pior Pedro, disse-lhe eu. Acho que o  hematoma reagiu com o tempero, principalmente com o vinagre e o cuminho, puxando ainda mais o roxo do seu olho. Vamos embora que eu estou imaginando  o que vai acontecer!...
          Quando chegamos a casa do Pedro, vi que as luzes da casa estavam todas acessas. Batemos a porta e Seu Paulo veio nos receber.
---Isso são horas de chegar! – foi logo dizendo sem nos encarar direito.
         Quando olhou para o Pedro, fez uma cara de espanto, arregalou os olhos e olhou para mim:
---Que foi isso?
          Eu já tinha treinado durante o percurso quais seriam minhas palavras para justificar aquele estado do meu amigo Pedro.
---Foi o seguinte Seu Paulo: ...
          Ele me interrompeu:
---Não precisa dizer mais nada, Samuel:
          Olhando pra cara amassada do Pedro disse-lhe:
---Você entra! E você fora! Apontou para a porta da rua.
          Confesso que saí sem poder justificar que o Pedro, seu filho querido, tinha lutado para defender a honra e a integridade de uma mocinha indefesa, nossa amiga, que corria o risco de ser massacrada pelo brutamonte de seu ex-namorado.
          Com o passar dos dias, o Seu Paulo ouviu do Pedro a realidade do que acontecera. Arrependido do tratamento que havia me dado aquela noite, mandou–me um recado que gostaria de fala comigo. Fiquei apreensivo, pois já tinha esquecido as palavra da defesa do Pedro  naquela noite. Mas nem foi preciso, pois pediu-me desculpas e disse-me que estava arrependido por ter-me mandado embora naquela noite, daquele jeito. Afinal, seu filho tinha sido um paladino defensor daquela moça. Que ele, seu pai, no seu lugar, teria feito o mesmo ou pior! Ficamos mais amigos ainda do que já éramos!
          Quando eu já me despedia do Seu Paulo, ele me chamou outra vez e me disse:
---Eu só não entendi uma coisa, Samuca: esse bife cru no olho do Pedro!?
---Eu também não, Seu Paulo. Mas dizem que é um santo remédio!
          E fui embora.

PVH-RO, 02/12/13

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

FIM DE SEMANA NUBLADO

Samuel Castiel Jr.

 








           Ele tinha dupla nacionalidade, do Brasil e da Bolívia. Estava de férias e voltava de La Paz. Como funcionário da antiga Mesa de Renda, hoje Receita Federal, Jorge ganhava muito bem mas era perdulário. Gostava de beber whisky importado, só se vestia com roupas de marcas; também gostava de cantar e divertir-se com lindas mulheres. No Brasil, quase todas as férias estava no Rio de Janeiro, frequentava Búzios e hospedava-se em hotéis cinco estrelas de Ipanema. Nessas últimas férias programou ir até La Paz, onde reviu velhos amigos  bolivianos  de infância e também matou a saudade de lindas bolivianitas. Estava de volta das férias,  passando pelo Rio antes de voltar a Porto Velho, cidade onde trabalhava e que adotara como sua. Tinha passado dias fantásticos no Rio, onde curtiu as praias, foi ao Maracanã e sambou também na quadra da Mangueira, num ensaio da escola. Estava com sua passagem marcada para sábado daquela semana porém, como ainda faltava uma semana para acabar suas férias, resolveu que ficaria mais uns dias no Rio. Foi a uma agência da companhia aérea para transferir sua passagem e foi lá que aconteceu o que não deveria ter acontecido. Encontrou dois amigos bolivianos, Dom Jayme e Locadio, que também estavam indo para Porto  Velho aventurar-se na extração de ouro nos afluentes do Madeira. Conseguiram convencer Jorge a juntar-se a eles e ficar mais aquele final de semana na cidade maravilhosa. Já estavam com um Jaguar emprestado de um amigo também boliviano, que se dera bem e era muito rico aqui no Brasil.
---Venha conosco Jorgito! Dizia Dom Jayme. Vamos até São Conrado e depois esticamos até La Barra. Beberemos  bons Whiskys, champagne Chandon e veremos mulheres, muchas mulheres, muchas muchachas brasileritas, que são mui belas e formosas!...
         Jorgito não resistiu. Juntou-se a dupla de bolivianos e lá se foram os três para uma farra sem limite, como costumava dizer Dom Jayme.
         Já deslizando no asfalto, confortavelmente instalado no banco traseiro e macio do Jaguar, Jorgito ia se deliciando com a linda paisagem da cidade maravilhosa, formada por gigantescas rochas, encarpadas no relevo da cidade, misturadas aquela invasão urbana, poluída com fumaça e um frenético trânsito. Entraram e saíram de vários túneis, porém, na saída de um deles, aconteceu um imprevisto: uma Blitz!
            Jorge nem tinha se dado conta quando o Jaguar, por sinalização do guarda, foi obrigado a parar no meio-fio.
---Que passa señor? – perguntou Dom Jayme.
---Os documentos do carro e a sua habilitação, por favor ---disse educadamente o agente da Polícia Rodoviária Federal.
            Dom Jayme olhou espantado, como se pedisse socorro, primeiro para Leocádio e depois para o Jorge:
---Explico bondoso señor: lo veículo no es mio e si de uno amigo e sus  documentos  se han quedado em su domínio. Jorgito mi amigo, tu que ablas mejor la língua portuguesa, explica tudo a esto bondoso señor.
            Jorge resolve sair do carro e tenta explicar o inexplicável:
---É o seguinte, seu Guarda: o Jaguar é de um amigo e seus documentos ficaram com ele, ou seja, não estão no carro. Quanto a habilitação, acontece o seguinte: meus amigos bolivianos não tem carteira, porém dirigem muito bem e a muito tempo! Eu tenho a minha CNH totalmente legalizada, porém não sei dirigir....
            O policial desconfiado  e percebendo a presepada, pediu que os outros dois também saíssem do carro e determinou que todos fizessem o teste do bafômetro. Como tinham almoçado e se deliciado com vinho português, o teste foi positivo para todos eles. O agente da Policia Rodoviária Federal solicitou pelo radio o reboque e prendeu os três amigos em flagrante delito, enquadrando-os por dirigir embriagados( Lei Seca ) e sem documentos de porte obrigatório.
             O Jaguar foi preso e rebocado,  os três amigos bolivianos foram recolhidos ao xadrez e só não viram o “sol-nascer-quadrado” porque o final de semana foi nublado.

Nota do Autor: Qualquer semelhança com o fato ou qualquer de seus personagens terá sido mera coincidência.

PVH-RO, 27/11/13.


sexta-feira, 22 de novembro de 2013

NO ESCURINHO DO CINEMA

NO ESCURINHO DO CINEMA
Samuel Castiel Jr.

 



A noite todos os gatos (e gatas) são pardos.





            O gongo já tinha soado pela terceira vez. O filme estava prestes a começar. Mas ainda havia algumas pessoas na sua  frente para comprar o ingresso. Foi quando ela passou com outra amiga, apressada para pegar também aquele cineminha.  Marcelão era matreiro para as mulheres. Gostava sempre de ser um dos últimos a entrar no cinema, quando as luzes já estavam se apagando. Arriscou uma piscada de olho, pois aquela morena apressada era  alta, tinha  seios fartos e um bum-bum arrebitado. Pra surpresa do Marcelão, ela correspondeu com outra piscada de olho e um leve sorriso maroto. Tinha chegado a sua vez no guichê e foi preciso a pessoa de trás tocar no seu ombro para chamar sua atenção, pois ele estava vidrado naquela morena que acabara de entrar na sala de projeção. Passou na roleta e entrou quase correndo na mesma porta por onde a morena sumiu por trás das cortinas. Parou. Deu um tempo para que seus cones e bastonetes se adaptassem a penumbra. Foi entrando sem enxergar quase nada. De repente aquela mão agarrou o seu braço e o puxou:
-- Tem um lugar aqui.
            Era a morena, com voz sensual, que correspondeu a sua piscada de olho quando entrava apressada. Não podia ver muitos detalhes, mas o seu perfil era interessante, sua voz grave, sensual. Seu perfume importado, não era cubano. Não largou mais a sua  mão durante todo o filme. Ficaram ali de rostos juntinhos. Chegaram a trocar beijinhos e outras carícias. Marcelão ainda tentou pegar naqueles seios fartos mas ela delicadamente afastou sua mão. Insistiu em outras carícias até mais ousadas porém foi sempre sutilmente desarmado. Lembrava-se apenas que o filme era uma comédia com a Ingrid Guimarães, a qual de vez enquando arrancava gargalhadas coletivas. Mas, na realidade, sua atenção não estava na tela. Quando sentiu que o filme caminhava para o fim, sussurrou ao ouvido da morena que queria o número do seu celular, mas também não obteve êxito, pois ela o tirou dizendo que não tinha nenhum celular, estava apenas de passagem pela cidade, devendo viajar ainda aquela semana, sem saber quando voltaria. Marcelão achou que era um blefe, talvez apenas para se valorizar. O filme acabou felizmente ou felizmente acabou sem que ela aceitasse suas  mãos quase sempre atrevidas. Sabia como eram essas zinhas, se fazendo de difíceis pra depois dar o bote. Quando as luzes do cinema se acenderam, deu um beijinho em seu rosto, saiu apressada com sua amiga e se perderam na multidão.
           Os dias se passaram, o Marcelão continuava intrigado com aquela morena. Chegou a voltar ao mesmo cinema mas nem sinal da morena.  Até que recebeu um telefonema. Era a colega da Brigitte, a moça do escurinho do cinema. Disse-lhe que tinha notícias da Bri e que estava ligando pra transmitir-lhe um recado: a Bri tinha lhe pedido que o procurasse para dizer-lhe que gostara muitíssimo dele, porém não teve a oportunidade de dizê-lo, pois havia viajado logo em seguida. Em outras palavras, estava apaixonada!...Gostaria, se possível fosse, dizer isso pessoalmente a ele algum dia. O Marcelão ficou desconcertado, mas perguntou:
---Pra onde a Bri viajou?
---Ela voltou pra Europa. Mora em Milão já faz mais de dez anos. É o terceiro de cinco filhos, órfãos de pai, e ajuda sua mãe como pode. De vez em quando vem ao Brasil visitar sua mãe.
---Espera um pouco! – disse Marcelão quase gritando. Você se enganou quando falou. Acho que quis dizer que ela é a terceira filha, não é?
---Meu Deus, não tenho autorização para falar desse assunto com você nem com ninguém.
---Agora quero saber tudo! Você tem que falar.
---Ok! Não vou esconder nada de você. A Bri na realidade é um traveco! Mas já está toda siliconisada. Melhor que muitas mulheres por aí. Ela ganha a vida na Europa, recebe em dólar e assim pode ajudar sua família.
          O chão faltou aos pés do Marcelão. Logo ele, que gozava de todos seus amigos que passavam por situações semelhantes. Não queria acreditar no que acontecera. Ficou mudo ao telefone, ao ponto da colega da Bri perguntar do outro lado:
--- Alô! Você tá me ouvindo? Não desligue.
---Ok, pode continuar falando. É que estou chocado! Não é fácil ouvir essa revelação. Estou confuso, pois troquei carinhos com ela, quer dizer, com ele, sei lá!... E os beijinhos?
        Com uma voz conciliadora ela prosseguiu:
---Não seja preconceituoso Marcelão! Nos dias de hoje isso tá ficando muito comum.
---Mas...
-- Não diga mais nada! Se o que eu vou lhe dizer agora vai servir para seu consolo ou fará você se sentir menos desconfortável, não sei, mas  vou  informa-lo em primeira mão: a Bri vai se operar  ainda este ano. Irá submeter-se a uma vaginoplastia ou cirurgia  SRS, ou seja, redesignação sexual. Aí quem sabe você se sinta mais a vontade.
            Ele não disse nada.
            Ela desligou. 




Nota do Autor:  Qualquer semelhança com o fato e os personagens terá sido mera coincidência.
                                                                                                                                         
PVH-RO, 22/11/13

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

LADRÃO DE CARRO

LADRÃO DE CARRO
Samuel Castiel Jr.










“ Todo corpo que cai vai empurrado pela gravidade, mas  nem sempre cai aonde deve!...”
                                (  Issac Newton / Samuel Castiel Jr. )


                 Era um domingo. Devia ser mais ou menos meio dia. As ruas estavam quase desertas em relação ao alvoroço dos outros dias da semana. Estacionei meu carro no meio fio, em frente a casa de meus  pais. Tinha ido visitar meu velho, pois ele se encontrava enfermo. Fazia pouco tempo que tinha chegado quando ouvi um barulho semelhante a uma explosão com vidros se estilhaçando, vindo lá de fora, da rua. Corri pra fora e o que eu  vi foi o vidro do meu carro todo estourado. Um homem branco,  pequeno, louro ou de cabelos pintados, atarracado e forte, que fugia correndo subindo a rua, com a minha bolsa na mão. Imediatamente liguei o meu carro e disparei atrás do ladrão. Sentido-se perseguido, entrou numa galeria de esgoto e livrou-se de mim. Apesar das buscas nas adjacentes ruas desertas  e ensolaradas, não encontrei ninguém. Já desanimado e voltando para casa, eis que avisto de longe aquela figura do arrombador do meu carro. Baixo atarracado e meio alourado, saia da galeria de esgoto por onde entrara, porém pela outra extremidade e por outra rua. Vinha de cabeça baixa, revirando a minha bolsa que furtara de dentro do carro, quebrando o vidro. Não tive dúvidas, era o ladrão! Imediatamente joguei o carro na direção dele, saltei correndo e teve inicio uma perseguição, só que agora a pé e em desabalada carreira. Lembrei-me então de gritar “pega-ladrão” e foi assim que em poucos minutos havia um grupo de pessoas correndo atrás do ladrão, subindo uma discreta ladeira na avenida 7 de setembro. Acontece que o ladrão correndo na frente, de vez em quando e virava e apontava para seus perseguidores com alguma coisa que trazia na mão, fazendo assim com que todos se jogassem ao chão. Na sequência continuava a perseguição, sempre aumentando cada vez mais o numero de perseguidores. Sentindo-se cada vez mais ameaçado, o ladrão escalou rapidamente uma parede, apoiando-se nas calhas e passou assim para o telhado das casas. Nisso para um carro ao meu lado e, vendo aquela aglomeração  com olhares curiosos para o telhado das casas, pergunta-me o que estava acontecendo. Era um amigo de infância e meu compadre. Sem perguntar por maiores detalhes sacou um revolver e rapidamente se juntou aos outros perseguidores. O ladrão correndo pelo telhado continuava ameaçando a todos com o objeto que trazia nas mãos e que todos nós pensávamos fosse um revolver. Só mais tarde eu identifiquei aquele objeto:   era uma chave de roda! Certamente o objeto com que quebrava o vidro dos carros. O meu amigo e compadre chegou a efetuar alguns disparos que passaram longe do alvo. Mais tarde quando o critiquei por sua pífia  pontaria, disse-me que atirara apenas para intimidar o meliante. Correndo e cruzando de telhado em telhado, o ladrão de carro ia passando por cima das casas, tentando desesperadamente escapar do cerco. Acho mesmo que ele já estava arrependido de ter feito aquele roubo.
       Tudo aconteceu muito de repente: o telhado de uma das casas quebrou e afundou, levando junto o ladrão. A família estava reunida almoçando quando o telhado desabou e aquele indivíduo sujo e fedido caiu por cima da mesa, quebrando as louças, derramando a feijoada e outras comidas em todas as direções e em todas as pessoas da família ali reunida. Era um almoço comemorativo de aniversário. Sem nada entender, as pessoas gritavam impropérios e o ladrão já começou a apanhar ali mesmo, em cima da mesa, levando socos e bufetes até cair ao chão quando passou a receber chutes e ponta-pés. Nós chegamos em seguida e pegamos o ladrão que continuou apanhando até a delegacia mais próxima. O policial “Baiano” lavrou o boletim de ocorrência (BO) e colocou o meliante atrás das grades.
     Naquela mesma semana, passando pelo centro da cidade, vi aquela figura aloirada, baixa e atarracada, com um dos braços na tipoia e hematomas no rosto. Estava encostado em uma Hillux estacionada nas proximidades do banco Itaú. Pensei comigo mesmo, a única punição que um ladrão como esse sofre, são  as porradas que as vezes recebe. Já os crimes de políticos e os chamados  do "colarinho branco", nem isso! Prevalece e ficam quase sempre na impunidade. Nesse caso, se não tivesse ocorrido a queda do telhado, ele poderia até ter se dado bem. Porém todo corpo que cai, vai empurrado pela gravidade, mas nem sempre cai aonde deve!...


PVH-RO, 13/11/13




          

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O JOGADOR

O JOGADOR

Samuel Castiel Jr.


" Malandro é malandro, Mané é mané! "
           ( Diogo Nogueira)







                                                                                                                                      Era viciado em jogo. Chegava a ser compulsivo. Futebol, basquete, vôlei, tênis de mesa, baralho, etc. Gostava de tudo, mas principalmente de apostar. Apostava na Mega-Sena, na Quina, na Loto-Fácil, etc. Comprava qualquer bingo que aparecesse. Muitas vezes chegava em casa com um frango assado que ganhara num bingo quando passava numa rua do centro. Quantas vezes chegava em casa altas horas da madrugada com um giz enfiado atras da orelha que se esquecia ao terminar a última rodada da sinuca. Criava galos de briga para lutas de rinha, sempre apostando em seus galos que recebiam revestimento de aço em seus esporões afiados.Ficava até altas horas da madrugada jogando pôquer com jogadores profissionais, em cassinos clandestinos. Já tinha perdido carro e até a residência, morando agora de aluguel. Sua mulher fazia promessa pra que ele parasse com essa fissura pelo jogo e pelas apostas. Mas não alcançava essa graça!
              Certa vez saiu na sexta-feira pro trabalho e não voltou. O sábado inteiro não deu notícias. No domingo, já passava do meio dia quando chegou. Vestia-se sempre todo de linho branco puro –como dizia,  com sapado de duas cores, chapéu panamá, com estilo malandrão. Mas estava sempre bem amarrotado. Nesse domingo, porém, além de amarrotado, estava todo sujo. Refletia bem o jogo perdido, sem revanche. Vinha acompanhado de um parceiro do jogo que tinha a cara de todos os malandros!
---Olha Barbosinha, acho que sua patroa não vai acreditar no que você perdeu! – disse o malandro, com um sorriso maroto  no canto da boca.
--- Ela sabe que dívida de jogo tem que ser paga!
      Foi entrando na casa e chamando pela mulher:
---Maria, vou te apresentar o Val, que é o meu parceiro no baralho. Ele veio comigo porque eu perdi você!
---Como assim? – pergunta a Maria com ar de incrédula.
       Era uma mulher de meia idade, porém nova e formosa, que tinha as coxas grossas e  um traseiro redondo, proeminente.         
---No baralho, é claro! Você tem que ir com ele e se deitar com ele. Leva e traz você no carro dele que tá lá fora. Você sabe muito bem que dívida de jogo tem que ser paga, não é?
---Filho da Puta é o que você é! Mas você me paga!
       Foi lá pra dentro e, quando voltou, tava com outro vestido mais colado, uma rasteirinha nova e tinha os lábios pintados de um vermelho forte.
---Vamos logo Seu Val, não gosto que esse traste fique devendo a ninguém!
        O malandro Val incrédulo saiu na frente e ela atrás.
         Meia hora depois, Barbosinha pede a sua esposa Clotilde pra servir o almoço e abrir uma garrafa do vinha chileno que comprara  recentemente. Pega o celular e liga:
---Alô, Val! Só pra lembrar, você me deve agora Cem Mil Reais.
        E desligou.


PVH-RO, 31/10/13

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

A "VACINA" DE SAPO

A “VACINA” DE SAPO

Samuel Castiel Jr.











            Sempre fui curioso. Algumas vezes paguei caro por isso! Certo dia, em conversa com um amigo do Acre, fiquei sabendo da chamada “vacina” de sapo, extraída do veneno de um sapo da Amazônia, e que estava fazendo verdadeiro prodígio nas pessoas que recebiam esse tratamento naquele Estado vizinho.  Imediatamente procurei inteirar-me e fui atrás de maiores informações, pois padecia de uma sinusite crônica que não curava com nada. Segundo esse amigo acreano, essa vacina era produzida por índios de varias tribos da Amazônia, tais como os Kanamaris, Katukinas, Kaxinawa, Marubos, Matses, Yaminawa, etc., e estava indicada pra cura da diabetes, colesterol, reumatismo, asma, sinusite e mais uma infinidade de males, além de produzir uma verdadeira desintoxicação no organismo, tornando as pessoas mais saudáveis e longevas. Produzia também uma enlevação da alma, fazendo com que as pessoas se tornassem mais puras e tementes a Deus.  O sapo, na realidade, é um anfíbio local chamado de kampô ou kambô, cujo nome científico é Phyllomedusa bicolor. O seu veneno é poderoso, raspado da costa dessa perereca e armazenado em palhetas de madeira. Nas tribos é sempre aplicado pelo curandeiro, também chamado de sapeiro, que primeiramente queima a pele do braço( nos homens) ou da perna ( nas mulheres)  com a brasa de um palito, fazendo vários pontos onde é aplicado o veneno do sapo. Dizem os indígenas que as mulheres que tomam essas vacinas ficam mais fortes para ajudar na caça, servindo também para curar a “panema”, uma espécie de depressão do índio.
            Depois de ter todos esses conhecimentos, confesso que já estava de malas prontas para viajar para o Acre, quando fui informado que um índio curandeiro estaria de passagem aqui em Porto Velho e faria a vacina naquelas pessoas que se interessassem. Iria atender apenas naquele final de semana, pois tinha que retornar ao Acre, as pressas, onde sua tribo o esperava. Custaria R$ 100,00  (cem reais) a aplicação. Não tive dúvida, eu seria um candidato em potencial! Recebi orientação para fazer uma dieta três dias antes, evitando comidas sólidas. No dia da aplicação, o jejum tinha que ser absoluto. Nem água eu deveria tomar antes da “vacina”.Como a mídia já tinha feito um alarde sobre esse tema, noticiando inclusive a morte de uma pessoa em Pindamonhangaba – SP.,  em 2008, o curandeiro estava preocupado com a Polícia Federal que estava investigando essa situação, inclusive visitando as tribos indígenas no Acre e em outras aldeias da selva amazônica. Sabia-se até de estrangeiros vindos  dos Estados Unidos, da Europa e da Asia no afã de tomar a tal vacina de sapo ou então levar algumas palhetas para seus países, cometendo assim a chamada  biopirataria, crime internacional, alvo de investigação pelos órgãos federais.
            Depois de ler o depoimento de varias autoridades no assunto, inclusive do biólogo Missawa que fez uma parceria com os índios Huni-Kui (Kaxinawa) sem êxito na tentativa de obter autorização para estudos das características e dos efeitos imunológicos do veneno do sapo, através do Institto Butantan, eu resolvi que deveria experimentar essa “vacina”, uma vez que ela já estava incorporada na cultura da chamada terapia da selva.
             Chegou o meu dia. Era  sábado e eu estava ansioso para saber qual seria a minha reação frente aquela “vacina”. Estava juntamente com outras pessoas em uma chácara nos arredores de Porto Velho, onde havíamos dormido por recomendação do sapeiro. As 5:30 da manhã o curandeiro mandou que nos acordassem. Recomendou mais uma vez que ficássemos em absoluto jejum. Levou-nos para o terreiro que ficava próximo a um igarapé, recomendando que deveríamos ter em mente as coisas que mais nos incomodavam, não apenas as doenças mas também os enigmas  espirituais para os quais não temos explicações. Pediu novamente que nos concentrássemos, fez algumas orações em língua indígena, que nada entendi. Depois levou todos para outro aposento da casa, dizendo que a vacina tinha que ser aplicada um por um de cada vez. Cada aplicação levaria aproximadamente uma hora, pois algumas pessoas poderiam necessitar de cuidados mais demorados. Perguntou se alguém gostaria de ser o primeiro e eu imediatamente me apresentei. Levou-me então para fora da casa e nos dirigimos para a beira do igarapé. Ali estavam uma mulher índia e seu auxiliar também índio, o qual meteu a mão em um saco de pano e tirou de lá de dentro uma perereca verde, que já veio com as perninhas amarradas cada uma  por um fio barbante. A seguir o sapinho foi amarrado em duas varetas que estavam fincadas no chão, em paralelo.  O sapinho então ficou estirado, amarrado pelas pernas. Aí foi que o curandeiro se aproximou de mim, pediu-me que tirasse a camisa e se dirigiu a uma pequena fogueira, retirando de lá um palito longo e com a ponta em brasa. Voltou-se para mim e disse:
---Vou fazer pequeninas queimaduras no seu braço.
             Encostando aquela tala com ponta de brasa na pele do meu braço, fez uns sete  furos de queimadura, produzindo muita  dor, porém suportável. Na sequência  pegou uma palheta de madeira e foi até onde o sapo se encontrava esticado pelos fios barbantes. Com a palheta ele raspou o dorso verde do sapo, tirando uma substância gosmenta e ligeiramente esverdeada. Voltou-se para mim e esfregou aquela substância em cada foco de queimadura no meu braço. Em trinta segundos comecei a sentir tonteira e mal-estar. A seguir vieram náuseas e fortes dores no estômago que me fizeram vomitar. A dor de cabeça parecia que ia explodir meus miolos. Minha pressão arterial subiu rapidamente. Meus olhos parece que iam saltar das órbitas. Consegui me acalmar, pensando que tudo era passageiro e que dentro dos próximos cinco minutos eu estaria melhor. Não estava e continuei piorando. Veio a diarreia com cólicas intensas. Um suor frio saia de todos meus poros. A respiração estava ficando difícil.  Acho então que desmaiei.
            Foi aí que tudo aconteceu. O ambiente era diáfano, havia uma paz absoluta e seres transparentes passavam por mim. Havia uma musicalidade suave de fundo e uma sensação de conforto pleno. Um ser angelical aproximou-se de mim e perguntou o que eu desejava ali.
--Quero falar com Deus! – disse-lhe.
            O ser afastou-se e fez um gesto para que eu o seguisse. Entramos em vários ambientes de luz, como se fosse um túnel, e onde cada vez mais a sensação de bem estar tomava conta de mim. Finalmente, abriu-se uma grande porta e vi sentado em uma poltrona brilhante muito grande e alta aquela figura também diáfana, com uma aureola dourada. Estava de costa para mim. Não precisava falar comigo através de palavras, pois eu entendia tudo o que me dizia e bastava que eu pensasse para que Ele me respondesse.
--Que queres aqui meu querido e curioso filho?
--Senhor, perdoai-me por ser curioso e não compreender muitas coisas da vida.
--O que queres saber filho querido?
--Porque existem pobres e ricos? Porque existem abastados e miseráveis? Porque uns esbanjam enquanto outros milhares amargam a fome cruel e vergonhosa? Porque crianças já nascem condenadas a morte ou com doenças incuráveis para sofrerem o resto de suas vidas? Porque existem pessoas boas e íntegras e outras são vis e de mau caráter? Porque tanta violência?Porque os povos fazem guerra, onde morrem milhares de inocentes? Porque?
              Quando Ele girou sua poltrona e ficou de frente para mim, o que vi deixou-me ainda mais perplexo, a ponto de explodir:  o rosto de Deus era o meu rosto! Foi então que recebi um forte jato de água fria no meu rosto, acordando-me de vez.
--Já chega! Já chega, meu caro amigo cara pálida! Você delirou muito e deu muito trabalho pra nós. Vá dar um mergulho naquele igarapé pra passar de vez essa lombra! --disse o curandeiro, já um tanto mal humorado.
              Guardo até hoje as sete cicatrizes da “vacina”de sapo no meu braço esquerdo. Nunca mais voltei a sofrer de sinusite.


PVH-RO, 22/10/13