sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

O ÚLTIMO NATAL

O ÚLTIMO NATAL
Samuel Castiel Jr.















         

               A cidade estava toda iluminada com lâmpadas coloridas. O clima de festa estava presente em cada rosto. Os bares cheios de homens vazios ou não. Nas ruas se viam as figuras extravagantes do Papai Noel fazendo parte da decoração. Os “shoppings” lotados de retardatários na busca de presentes.
          Apesar da chuva fina que caía, Antenor caminhava parcialmente molhado, coberto apenas por aquela manta velha quase toda furada, e que também lhe servia de cobertor  para protegê-lo nas noites de frio. O cabelo desalinhado, esbranquiçado  e a barba grande não permitiam reconhece-lo facilmente. Suas vestes sujas e surradas completavam o perfil de um morador de rua. Quando saltou na rodoviária  e tentou pedir informação sobre como chegar ao  bairro da Consolação, percebeu que muitas pessoas dele de esquivavam, julgando-o um pedinte inoportuno. Estava cansado e com fome. Continuou  a caminhar. Seu destino era ver, nem que fosse de longe, sua antiga casa que deixara a mais de vinte anos, quando fora dado como morto numa pescaria cujo barco afundou. Fora arrastado pelas aguas da cachoeira, bateu com a cabeça nas pedras mas conseguiu agarrar-se nos galhos e  chegou até a margem do rio. Quando acordou embrenhou-se na mata pensando que estava indo no caminho certo, porém se perdeu e ficou andando em círculo até que desmaiou e, ao acordar, ficou meditando sobre o que ocorrera: estava longe do local onde seu barco afundara. A força das aguas na cachoeira, as pedras, seu desaparecimento... Tudo levava a crer que ele teria sido dado como morto. Foi aí que uma ideia começou a se formar em  sua cabeça. Estava numa situação financeira péssima. Devia um valor impagável. Mesmo que vendesse tudo que tinha, não conseguiria quitar suas dívidas. A vergonha que teria de enfrentar perante a sua família. Pensou durante todo o dia e chegou a seguinte conclusão. Aquele seguro de vida que fizera, com sua morte,  seria suficiente para sua mulher e seus filhos sobreviverem. Com essa ideia martelando sua cabeça, decidiu-se: nunca mais voltaria para sua casa. Seria melhor continuar dado como morto. Caminhou  pela mata até  uma estrada onde pegou uma carona para chegar  numa cidadezinha no interior de Minas. Ficou ali morando nas ruas, alimentando-se com o que lhe davam das sobras dos restaurantes.  Aos poucos conseguiu sair das ruas, veio o emprego, foi melhorando progressivamente.  Os anos foram se passando e ele já estava se sentindo estabilizado novamente, quando naquele dia por um acaso ouviu aqueles homens da polícia conversando com o proprietário da empresa:
----Temos certeza que se trata da mesma pessoa. Aqui temos algumas fotos. Toda nossa investigação aponta que é essa pessoa e que está trabalhando na sua empresa.
              Não teve tempo de mais nada. Saiu apressado pela porta dos fundos e deixou tudo para trás. Perambulou pela cidade e foi se mudando primeiramente de endereços e depois de cidades. Dormia em pousadas, porém quando seu dinheiro acabou foi forçado a ficar pelas ruas. Voltou a se alimentar com as sobras de restaurantes. Pedia esmolas nos semáforos. Ouvia muitos impropérios:
---Vai trabalhar vagabundo!
---Não tem vergonha marmanjo! Vai procurar emprego!
             Mais de 20 anos se passaram, não queria mais aquela vida de fugitivo. A saudade de sua família era insuportável. Foi quando então que começou pensar em voltar. Não para ficar, mas queria pelo menos ver sua família de longe. Sua mulher Verônica, seus dois filhos Valter  e Luiz que deixara tão pequenos.  Esses meninos já deveriam ser homens...
              Continuava a caminhar por aquele bairro nas ruas que tanto conhecia. Ao longe avistou seu antigo lar. Era noite e havia pouca iluminação naquele local, o que lhe permitiu maior aproximação. A casa estava toda iluminada. Muitas pessoas reunidas. Aproximou-se ainda mais. Ouviu a música que vinha lá de dentro: Noite Feliz. Aproximou-se o mais que pode, escondido pelo muro e pelas grades. Lá estavam dois rapazes que reconheceu como seus filhos. Lá estava também Verônica, um pouco mais envelhecida, porém ainda linda aos seus olhos. Havia porém um homem ao seu lado com seus braços passados por sua cintura. Sentiu um frio percorrer e invadir seu corpo. Tinha certeza que aquele era o novo marido de sua amada Verônica. E o pior é que nada podia ser feito. Tida como viúva, tinha o direito de casar-se outra vez. Quando estava perdido em seus pensamentos, ouviu aquela voz forte bem perto de si:
--- Você aí! O que está fazendo olhando pra nossa casa? Se não disser quem é você vou chamar a polícia.
     Era o Luiz, seu filho mais velho.
--- Calma meu bom jovem! Só estou assistindo a festa de vocês. Também já tive uma família...
--- Está bem, se for assim vou mandar preparar um prato com as comidas da nossa ceia de Natal. Volto já.
--- Não, não se preocupe, já estou indo embora.
--- Agora sou eu que quero e insisto que fique! Não demora nada e nada tem a perder.
      Saiu quase correndo e não demorou a voltar com um prato repleto de comidas típicas do Natal.
---Onde está você? Pedi que ficasse! Aqui está o que lhe prometi.
     Não havia mais ninguém naquele local.
      A rua deserta foi iluminada por fogos de artifício explodindo no ar. Era meia noite! Luiz então com o prato de comida na mão, voltou para dentro de casa e sua mãe perguntou-lhe:
---O que faz você com esse prato na mão?
---Fui levar comida a um mendigo que olhava lá de fora para nossa festa. Mas ele se foi antes que eu voltasse. Pareceu-me uma pessoa estranha, mas  do bem. Disse-me que só queria olhar a nossa festa pois também já tinha tido uma família  que se perdeu no passado.
---Você e seu coração mole! Largue esse prato e venha abraçar sua mãe. O Menino  Jesus acaba de nascer!
     A chuva ficara mais grossa, mas Antenor caminhava pelas ruas e suas lágrimas misturavam-se com os pingos da chuva. Ele sabia que tinha perdido tudo irremediavelmente,  inclusive sua  família por quem dera tudo, sua própria identidade. Nada mais lhe restara! Ouviu então bem longe  o sino de uma igreja chamando para a missa da meia noite. Era a missa do galo. Dirigiu-se para lá, lentamente. Ao chegar, o padre fazia o sermão, que falava do espírito de salvação com o nascimento de Cristo, que veio ao mundo para salvar o homem de seus pecados. Ficou ali como se estivesse hipnotizado. Seu corpo ardia com febre. Estava molhado, cansado e com fome mas nada sentia. Sentou-se em uma cadeira bem no fundo da igreja, num cantinho bem isolado. Aos poucos seu corpo foi sendo invadido por uma sensação de êxtase e sentiu-se como se estivesse flutuando no ar. Como num sonho,  o Menino Jesus o  chamava e mostrava-lhe o caminho que deveria seguir.
                Ao amanhecer, o padre foi acordado bem cedo pelo sacristão que o chamava insistentemente, pois havia um homem morto, sentado no fundo da igreja e, pelos trajes,  parecia ser um mendigo.


PVH-RO., 23/12/16

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

A DUPLA EMBOSCADA



Samuel Castiel Jr
        




            Ele estava postado sobre aquela pedra desde bem cedo, quando o orvalho caído durante toda  a noite deixara sua superfície úmida e escorregadia. O sol subia rapidamente no nascente e ele começava a sentir sua pele ficar suada, pegajosa. O rifle pendurado em sua costa e o chapéu de palha de abas largas completavam a figura sinistra de um matador. Tinha tudo planejado nos mínimos detalhes. Desde o dia que foi procurado por aquele desconhecido e lhe foi passada uma foto da vítima. Não tinha e nem queria saber dos dados pessoais do encomendado tais como nome, idade, estado civil, se tinha família e filhos. Nada disso lhe importava, não  lhe seriam úteis. Queria apenas o trajeto que aquele infeliz percorria de sua casa até seu trabalho, na garimpagem de pedras preciosas num igarapé bem escondido e camuflado no meio da selva densa. Muitos chamavam de trabalho sujo mas... era o que ele sabia fazer! Executava e recebia muito bem pelo seu trabalho. Pedia sempre adiantado a metade do pagamento e depois da execução recebia o restante. Dessa vez tentou saber sutilmente quem encomendara o serviço mas foi imediatamente desestimulado:
-- Olha aqui cara: você aceita ou não aceita o serviço? É pegar ou largar!... Nada de ficar fuçando com conversa “mole”. O Chefão não iria gostar nada de saber que você andou insinuando e fazendo perguntas.
-- Ok, Ok. Não está mais aqui quem perguntou!...
     Mas depois, com o passar dos dias, ficou matutando ainda por algum tempo sobre aquele homem que o contratara. Tinha os olhos da morte, frios e iguais aos seus.
       Aquele local fora escolhido minunciosamente por ele. Um local perfeito para uma emboscada. Ficava num desfiladeiro, numa escarpa de enormes  rochas escondidas pela mata e que pareciam amarradas por inúmeros cipós que passavam por cima dessas pedras como tentáculos de um invisível e gigantesco polvo. A uns setenta metros de altura, escolhera ficar de tocaia naquele ponto. De lá tinha uma visão perfeita da estrada lá embaixo. Adaptara uma luneta a seu rifle winchester para tornar sua pontaria mais precisa, fatal. Sabia que não poderia dar mais que um tiro. Sabia também que um segundo disparo seria bem mais difícil acertar o alvo, pois perderia o fator surpresa; o susto da montaria faria o animal disparar tornando sua pontaria falha mesmo com o auxílio da luneta.
         O silêncio era quase total não fosse quebrado vez por outra pelo piado da inambu distante chamando seu companheiro. Sabia que deveria ficar praticamente imóvel, pois alguns pássaros e macacos costumam avisar aos outros animais da presença de perigo ou intrusos no seu habitat. Sem dúvida alguma ele era um profissional competente ---pensava. Sua folha corrida mostrava isso. Perdera a conta de quantas almas já tinha despachado para o inferno.
          Com um binóculo olhava insistente e nervosamente para aquela curva da estrada de chão batido. Era por ali que sua vítima deveria aparecer e caminhar para a morte. A temperatura subia e o calor ficava cada vez mais intenso. Nenhuma corrente de ar soprava, nenhuma folha nas arvores se mexia. De repente, montado em seu cavalo surge na curva da estrada a sua vítima. Parecia despreocupado, com um cigarro de palha na boca, trotando em sua montaria. Posicionou-se então com o corpo deitado sobre a pedra coberta de musgo. Esperou. Prendeu a respiração já com o dedo no gatilho. Atirou. O estampido forte ecoou na mata e reverberou nas rochas.  Pássaros assustados voaram em polvorosa.  A vítima caiu ao solo fulminada pelo tiro certeiro que transfixou seu peito. Sua montaria disparou em desenfreado galope. Satisfeito consigo mesmo, o atirador levantou-se para começar a descer a escarpa pedregosa, pois ele próprio precisava constatar a morte irreversível daquele infeliz. Mal ficara de pé e outro tiro ecoou, desta vez bem próximo  ele, vindo de uma rocha um pouco acima dele. Só deu tempo de ver um rastro de fogo que o atingiu perfurando  seu peito. Olhando para cima, antes de fechar seus olhos para sempre, ainda viu aquele perfil e aquele olhar frio da morte, iguais aos seus, que tanto o impressionaram. Caiu e deslizou no lodo das pedras para o abismo da escarpa rochosa.


PVH-RO., 14/12/16