terça-feira, 30 de julho de 2013

TREVAS DA MORTE

TREVAS DA MORTE
 Samuel Castiel Jr.













               Descendente de eslavos, branco e louro, vermelho, olhos verdes e  com cerca de 1,85 m de altura, pesando 120 kg, Hilton  Arches Iankoviskev  era um homem excessivamente meticuloso, calculista, misófobo, epiléptico  e também hipocondríaco. Claudicava devido  a  sequela de uma necrose avascular  ( Doença de Legg-Perthes ) no quadril direito quando ainda adolescente na Theco-eslovaquia. Mudou-se com seus pais para o Brasil ainda jovem. Seus pais  haviam comprado  fazendas no Rio Grande do Sul, e iniciaram no ramo da pecuária  de corte, quase na fronteira com o Uruguai. Como a região era essencialmente  propícia a pecuária, seus rebanhos cresceram e se multiplicaram.  Suas terras e pastos  eram como um imenso gramado verde de futebol a se perder de vista. A família  Iankoviskev prosperou e continuou abastada e de grandes posses. Com o falecimento de seus pais, Hilton Arches, herdeiro único, passou a ser o proprietário absoluto de todo aquele império e de todo aquele gado. Mas Hilton era excessivamente apegado as coisas materiais. Ao contrario de seu pai que sempre foi um homem sem muito apego ao dinheiro e aos bens que possuía. Único herdeiro de toda a fortuna acumulada por seu pai, Hilton não precisava  trabalhar, apenas administrava seus bens. E  assim tinha tempo suficiente para dar vazão as suas neuras, complexos, medos e fobias. Lia muito e passou a investigar sobre algumas fobias que o atormentavam. Sofria com a possibilidade de contaminar-se com  germes e bactérias e, por isso, estava sempre lavando suas mãos. Não conseguia ficar em ambientes fechados ou escuros, pois se isso acontecesse tinha suores frios e vertigens, podendo mesmo chegar até  a  um ataque epiléptico. Com o passa dos anos, começou a ter informações de ancestrais  seus que teriam sido vítimas de uma doença terrível e rara chamada catalepsia patológica, também chamada de Doença dos Enterrados Vivos. Nessa doença, a pessoa desenvolve um estado de paralisia geral de toda a musculatura, principalmente dos membros, que se tornam rígidos, como nos mortos. Essa condição pode ocorrer associada em portadores de outras doenças, tais como Doença de Parkinson, síndrome neuroleptica maligna e epilepsia. Também pode ocorrer como sintoma característico na abstinência de anfetaminas como a cocaína, ou até mesmo no tratamento de esquizofrenia por um antipsicótico como o haloperidol, ou até mesmo de um anestésico tipo cetamina. Hilton Arches sabia de tudo isso mas achava que, como havia estórias de ocorrência em seus ancestrais, poderia ter a infelicidade de ser também uma vítima desse mal. Lia tudo que continha esse tema e assim leu Alexandre Dumas ( O Conde de Monte Cristo ) onde seu personagem Abbé Faria tem frequentes ataques de catalepsia até morrer definitivamente de um deles. Debruçou-se também sobre as obras de Edgard Allan Poe que tratou desse tema em sua obra. Leu também o autor brasileiro Alvares Azevedo que na sua obra “Noite na Taverna” tem um personagem chamado Solfieri que é portador de catalepsia patológica. Passou então a ter pesadelos,  onde se via sendo enterrado vivo, sem que ninguém pudesse ajudá-lo. Acordava apavorado, molhado de suor. Sua esposa o aconselhou  a procurar um médico, mas de imediato refutou a ideia. De nada iria adiantar!  E cada dia que passava ficava mais estressado. Não queria ir ao médico, muito menos tomar remédio. Sabia também que a maioria desses remédios são controlados e causam dependência se usados por tempo prolongado. Preferia não tomar.  Perdido nessas elocubrações, começou a elaborar em sua mente um projeto que poderia vir a ser literalmente a sua salvação. Mandaria  construir  um mausoléu bem no final de sua propriedade, onde já não passasse  ninguém e que ficasse muito distante de sua residência. Esse mausoléu seria especial, arquitetado e desenhado por ele mesmo. Teria espaço suficiente para construir prateleiras, onde criaria uma verdadeira dispensa de gêneros alimentícios  não perecíveis, suficientes para mantê-lo pelo menos por um mês, inclusive com garrafões de água mineral para saciar sua sede. O mausoléu seria hermeticamente fechado, apenas com uma pequena grade de aço na parte  superior da porta para circulação do ar. Em cima do mausoléu, teria uma crucifixo em bronze, e também um sino, cuja corda ficaria para dentro do mausoléu, pois caso ele voltasse do estado cataléptico, poderia puxar a corda e o sino seria ouvido a distância, atraindo a atenção da sua criadagem. Não esqueceu ainda de um megafone, onde ele também poderia chamar por  socorro, caso voltasse desse terrível estado de paralisia.  Tudo ficou pronto, com os mínimos detalhes meticulosamente calculados. Uma vez por mês ele mesmo ia até ao mausoléu e trocava seus gêneros alimentícios, seus garrafões de água. Fez um trato com sua mulher que, em caso de sua morte, deveria ser levado necessária e impreterivelmente para aquele mausoléu que ele construira com tanto esmero. O tempo foi passando e depois de mais de uma década, poucas pessoas ainda se lembravam daquele mausoléu abandonado nos fundos da fazenda do milionário e excêntrico Hilton Arches. Depois de uma tournè pela Europa e Asia,com sua esposa Ingrid , e que durou aproximadamente um ano,já com seus 71 anos ele foi encontrado morto pela manhã, em seu leito,  por sua esposa que saía do banho matinal. Cumpridas as formalidades legais, o corpo foi liberado para o velório e sepultamento.
        A viúva Ingrid, entretanto, lembrava-se bem  dos desejos de seu marido, ou seja, sepultá-lo naquele mausoléu que ele mesmo tinha arquitetado e construído lá nos fundos distantes das terras de sua fazenda. Além disso, recomendara a ela que  a urna deveria ser fechada, porém jamais parafusada. E como o desejo de morto deve ser sempre cumprido, Ingrid pediu a funerária que fizesse tudo conforme seu falecido esposo havia recomendo. Tudo pronto, o corpo de Hilton foi colocado em uma  urna de mogno,  toda trabalhada, com uma janelinha de vidro que permitia ver o rosto do morto, o qual parecia dormir, com  expressão serena e tranquila! O féretro após a missa de corpo presente seguiu para o mausoléu nos limites da fazenda. Com o movimento do carro fúnebre, a rididez  que tomava conta dos músculos de Hilton foi lentamente  se desfazendo. Ele abriu os olhos. O que sempre temeu estava acontecendo! Ele estava sendo enterrado vivo! Seus olhos estavam abertos, sua consciência perfeita, mas ainda continuava paralizado. Não conseguia falar, nem mexer um músculo da face sequer! Mas agora via e sentia perfeitamente as trevas da morte! trevas da noite.jpgA urna foi colocada numa espécie de pedestal  no mausoléu. Foram rezadas as orações de despedida, colocadas as coroas e flores sobre a urna, trancada a porta e as grades de aço, sendo as chaves entregues a viúva  Ingrid. Naquela mesma noite,  quando o silêncio imperava naquela área distante das fazendas, no limite da mata densa, o corpo de Hilton começou a se mexer e, como ele tinha previsto, foi fácil arrancar aquela tampa da urna, pois não estava parafusada. Já fora da urna, foi até o armário onde guardava as velas e o fósforo. Mas a humidade do local tinha inutilizado os fósforos que não mais acendiam. Mesmo assim, desesperadamente, tentou em vão atritando um por um todos os palitos de meia dúzia de caixas que tão bem guardara. Concentou-se o resto da noite na escuridão, esperando ansiosamente pelo raiar dia, quando colocaria o restante de seu plano em ação. Mal o dia clareou, procurou pelos garrafões de água, porém estavam secos, a água havia se evaporado. Correu para os armários da dispensa, mas quando abriu uma das portas viu a silhueta de um rato que furtivamente fugiu. Todos os alimentos que guardara haviam de deteriorados. Lembrou-se do sino. Sim, o sino! Poderia chamar alguém que viesse em seu socorro. Correu para a corda do sino, mas quando a puxou, a corda que já estava puída, quebrou lá no alto, próximo ao badalo.  Já em pânico, lembrou-se do megafone. Sim, lá estava ele! Correu para pegá-lo  mas quando puxou o botão para “ON”, o “led” verde não se acendeu. As pilhas  tinham  se esgotado, e não havia  outras. Com fome, com sede, desesperado e em pânico, Hilton Arches já não conseguia mais raciocinar. A noite já chegava outra vez! Correu para a grade de aço da porta. Uma grande lua nascia distante, iluminando tudo por trás da mata. Uma coruja pousou sobre a folha de uma bananeira que ficava em frente ao mausoléu. Curiosa, parecia olhar para ele!...


PVH-RO, 29/07/13

sábado, 27 de julho de 2013

AMOR BANDIDO

Samuel Castiel Jr.







          





       Ele não acreditou quando ela foi embora. Chegou do trabalho e não mais a encontrou. Nenhum bilhete, nenhum aviso, nenhum papel de pão, nada! Nem mesmo um rabisco de batom no espelho do banheiro avisando que partiu. Nada mesmo!  Só teve a certeza do adeus  pelas suas roupas, sapatos e demais pertences que haviam sumido, deixando seu guarda-roupa vazio.  Ficou triste, entrou em depressão. Amava aquela mulher! Ela representava tudo para ele. Tá certo que gostava da boemia, chegava as vezes tarde da noite, mas traí-la, nunca! Tá certo que ela já o tinha avisado:  caso  continuasse levando vida de solteiro, ela iria embora. Mas ele não se conformava! Com o passar dos dias foi ficando cada vez mais triste. Já não comia direito, tinha saudade dos bifes de fígado acebolado que a Juju lhe preparava no almoço. Não esboçava nenhum sorriso sequer. Os dias passando, nenhum telefonema, nada! Esse silencio para ele tornava-se  cada vez mais torturador, cruel. Começou então a procura-la em todos os lugares possíveis e impossíveis. Na repartição informaram-lhe que ela havia tirado férias. As irmãs disseram-lhe que Juju tinha viajado e não sabiam nem pra onde. Tinha realmente sumido. Com o passar dos dias resolveu escrever uma carta para entregar-lhe quando a encontrasse ou soubesse de seu paradeiro. Nessa carta ajoelhava-se, pedia perdão e jurava abandonar a vida boêmia, caso sua Juju voltasse para ele. Prometia que pelo menos duas vezes por semana traria shashimi de salmão, que ela tanto gostava. Prometia também que a levaria toda sexta-feira para dançar no Mandacaru. E tem mais, caso saísse sua gratificação de venda, compraria até mesmo o seu carro zero! Mas a carta ficou engavetada por muito tempo! Até que um dia soube que sua amada Juju voltara das férias e já tinha até retornado ao trabalho. Imediatamente foi até lá e deixou sua carta cheia de humilhações e arrependimentos. Duas semanas se passaram e não houve nenhuma resposta, nenhum sinal da parte da Juju. Ansioso, foi outra vez procurá-la na repartição. Jucirema não o recebeu, mandou apenas ameaçá-lo de chamar a polícia caso ele continuasse a importuná-la. Ficou chocado com a frieza de sua amada. Foi então que teve a ideia de contratar um advogado para reaver tudo que havia dado a Juju: joias de ouro 18 kilats, colares de pedras preciosas, anéis magestosos, etc.
--Ainda tem mais doutor: quero que me devolva também a quantia de cinco mil reais que ela me pediu emprestado na véspera de “vazar” de casa!  Deve até ter usado meu dinheiro pra viajar, quem sabe com um “Ricardão” qualquer?!...
   Tudo certo, o advogado entrou na Justiça junto a Vara da Familia, pedindo a restituição de bens valiosos que a Jucirema teria levado, quando abandonou aquela união estável. Pedia também que devolvesse os cinco mil reais que lhe foi dado a título de empréstimo.
    Marcada a primeira audiência de conciliação, Joventino ficou eufórico, pois havia uma expectativa--quem sabe?, até de uma possível reconciliação.
     No dia da audiência,  lá estava ela linda e sensual como sempre. Mas sua fisionomia estava séria e tensa.
--Tadinha --pensava Juventino. Estava até arrependido mas não encontrou outro jeito de tentar uma reaproximação com a sua amada Juju.  Quem sabe na frente do “capa-preta”?
    Quando a juiza de conciliação pediu que Jucirema se manifestasse, ela disse:
--Olha aqui, dotora:  as joias que esse aí me deu foi presente e presente não devolvo não! Quanto aos cinco mil reais,  isso aí eu até concordo! Apesar de que no momento que eu pedi tava só eu e ele. Então seria a palavra dele contra a minha! Não é mesmo?  Mas tudo bem.
    Tirou da bolsa um pacotinho de dinheiro amarrado numa liga elástica e jogou na mesa:
--Taí seu dinheiro!
   Joventino com  cara de bôbo desconsolado, olhando para a Jucirema como se estivesse em transe, perguntou-lhe:
--Não vai fazer falta pra você, Juju?
--Pra falar a verdade vai sim , Jô!  E você sabe disso! Principalmente agora que voltei de férias, sabe como é!  Mas...
    Pegando o dinheiro e devolvendo para a Jucirema, ele diz:
--Pode ficar então, Juju! Agora, como as joias, também é um presente pra você!
   A juíza de conciliação e os advogados se entreolharam. Foi lavrado um Termo de Reconciliação. Era mais um caso de amor bandido. A sessão foi encerrada.


PVH-RO, 27/07/13

quarta-feira, 24 de julho de 2013

O TREM E A LINHA DE SEROL






     





             Na irriquieta adolescência, de acordo com as estações do ano, tínhamos as diversas brincadeiras. Na época das chuvas fortes, por exemplo, brincávamos de  solotex, que era o futebol de botão ou de mesa, cujos jogadores eram feitos de caroços de tucuman serrados, lixados e polidos com cera de lustrar sapatos. Petecas e piõe vinham na sequência. As petecas coloridas, algumas com o núcleo trazendo desenhos que imitavam carambolas, eram as que tinham maior valor, chamadas petecas colombianas. Chegavam as vezes a valer cerca de 5 ou 6 tecos, ou seja, para ganhar a posse de uma dessas petecas, o jogador adversário tinha que ganhar 5 ou 6 vezes a mesma partida! Tinhamos também os bolôs de aço pra quebrar petecas de outros meninos que se aventuravam a jogar com a gente. Aquele que gritava  primeiro“FONA” era o que comandava o início do jogo de petecas! Assim, quando tocava a campainha pro recreio na escola, saiamos correndo e já íamos gritando de longe: --“FONA!” pra ganhar o mando do jogo. Os piões e carrapetas eram torneados do tronco da goiabeira, mogno, cedro ou mesmo da favera-ferro. Tinham que ser resistentes para suportar as picadas de outros piões sem partir! As carrapetas tinham que ser mais leves, pois eram jogadas e aparadas na mão! Os piões coloridos e de corda, da marca Estrela, não tinham nenhum  valor para nós, eram brinquedos de“pirralhos”como costumávamos dizer! Nos meses mais quentes brincávamos de “PATELA”, tomávamos banho nos igarapés dos arredores da cidade, como por exemplo, o Banho do Pe. Pio, o “Três-e-Meio”, as “Pedrinhas”, os “Milagres”, etc. As baladeiras ou estilingues atravessavam o ano inteiro, mas eram mais vistos quando floravam os cajueiros e coqueiros, pois chegavam em bandos papagaios, curicas e periquitos! As patelas nada mais eram que aquelas borrachas com ranhuras paralelas do solado dos sapatos que, arrancadas, eram arremessadas para retirar de um círculo previamente riscado no chão, papéis de carteira de cigarro que eram dobrados como se fossem cédulas de dinheiro! Quando não tínhamos campo de grama pra jogar, fechávamos a rua e com tijolos marcávamos as traves do gol e jogávamos até anoitecer, quando nossas mães já cansadas de chamar para o banho vespertino, pegava o cinturão e acabava com o jogo!  E assim se passava o ano inteiro com as várias brincadeiras se alternando por temporadas. Mas de todas essas brincadeiras, a que mais me marcou e fascinou foi o papagaio ou pipa! Em algumas outras cidades do Norte, também chamado de rabiola. Tinha que ser verão, com muito sol e vento! Fazer e empinar um papagaio era minha melhor distração! Confeccionavamos os papagaios usando talas de buriti e papel de seda. Os desenhos usados eram os mais variados. Tinhamos desde os mais simples, de uma única cor até os mais sofisticados como de xadrez, em “T”, “Banda-de-Asa, de “Caveira”,de “Losângulos”, de“Listra”, etc. Fazer o papagaio “catar”, ou seja, descer como uma flexa de ponta-cabeça, com a rabiola retilínea e depois correr de banda cortando a linha de outros papagaios que aparecessem pela frente! Era demais!...Ver a garotada correndo como enloquecidos, com varas nas mãos pra pegar aqueles  papagaios que, cortados, já não tinham mais donos!...Alguns usavam colocar giletes  encastoadas na rabiola de seus papagaios para cortar  os incautos que tentassem pendurar seus adversários trançando suas linhas nas rabiola. Particularmente, eu não gostava desse método! Achava que era um artifício covarde! Pra cortar um outro papagaio, tinha mesmo que ser no serol!  A linha era encerada de duas maneiras: esticando-a entre dois postes de rua, ou com o papagaio já no ar, encerando e “descaindo” a linha. Mas, dessa última forma, o vento tinha que estar forte e o papagaio com “força”! Tinha ainda os que não usavam serol, preferindo brincar de “linha branca”. Esses eram facilmente abatidos ou tinham que fazer a chamada “bolada”, que nada mais era do que trançar os papagaios lá no alto e puxados para baixo com toda rapidez possível! Aquele que fosse mais rápido seria o vencedor, quebrando com suas próprias mãos a linha do adversário!... O serol sempre foi o grande segredo! Era previamente preparado, usando-se cola de sapateiro em tabletes ou barras, que eram fervidas em água até ficarem liquefeitas. A seguir adicionávamos o vidro pilado ou moído e estava pronto o serol para passar na linha!
      Havia nessa época uns três impinadores de papagaio que reinavam como campeões absolutos: Nézio Guimarães, seu irmão Alexandre Guimaães ( o Xanda ) e o “Pau-Sêco”. Cada um tinha seu estilo próprio de exibir seus papagaios! Um colocava longas rabiolas, outro gostava de papagaios menores, com linha mais fina e que “pegava” melhor o serol. Quando esses campeões estavam com seus papagaios no ar, todos imediatamente recolhiam suas linhas se não quisessem ficar sem os seus papagaios!
      Mas, depois de algum tempo fiquei sabendo que o grande segredo do serol chamava-se “preparo”! Esse preparo na realidade era um aditivo que quando colocado no serol, ajudava-o a secar mais rápido e também a ser mais eficiente em cortar a linha do adversário! Depois de procurar informações mais detalhadas, colocar olheiros infiltrados, fiquei sabendo de  alguns “preparos”tipo ácido muriático, solução de bateria e outros, e com o tempo cheguei a conclusão de que esses “preparos” só apodreciam nossas linhas mais rapidamente!... Um outro segredo que também descobri, é que o vidro a ser pilado ou moído era de fundamental relevância! O vidro azul que vinha como embalagem do “Leite de Magnésia” era ideal, pois quando pilado ou moído, dava um serol afiadíssimo! Alguém descobriu também que em vez de pilar o vidro em pilão de ferro, o melhor e mais prático era colocar os vidros  nos trilhos do trem! Quando o trem passava era só ir juntar o vidro moído e preparar o serol.  E, assim, quando fechavam o Escritório da Estação da EFMM, eu e minha turma levávamos nossos vidros de Magnésia e outros tipos de vidros para colocar sobre os trilhos do trem. No dia seguinte íamos buscar o pó do vidro! Nunca entendi que diferença fazia o serol com vidro pilado em pilão de ferro e o vidro moído nos trilhos do trem! A verdade é que, enquanto a EFMM tinha seus trens partindo para Guajará-Mirim, eu também entrei para a lista seleta dos campeões de papagaios! Só não me perguntem o porque!?...
                                                                                                
DESABAFO DE UM RADIOLOGISTA

Samuel Castiel Jr.
MEDICO RADIOLOGISTA.png








Já não consigo mais renovar
Minhas máquinas ficaram obsoletas
É como se eu quisesse acabar
Uma carta e me faltassem as letras!

Meu tomógrafo queimou o tubo,
A ressonância ficou sem  a bobina,
Queimou o fusível, a placa e tudo...
Assim é inevitável  a minha  ruína!

O fornecedor não quer mais me vender,
O insumo cada vez mais caro!
Meus   preços vou ter que rever...

Não sei se vou, se fico ou paro!...
Será uma sina carregar essa Cruz,
 E viver da  mísera guia do SUS?!


 PVH-RO, 18/07/13

quinta-feira, 18 de julho de 2013

O RECO E O BOI MALHADINHO
Samuel Castiel Jr.

 







       São muitos os bairros que participam de concursos de quadrilhas e boi-bumbás nas festas juninas aqui em Porto Velho. Sem dúvida o  grande concurso acontece no Arraial “A Flor do “Maracujá” onde as barraquinhas vendem comidas típicas tais como vatapá, tacacá, maniçoba, caruru, galinha a cabidela, bacalhau a Gomes de  Sá,  etc., além  churrascos e churrasquinhos de gato com carnes bovina e caprina,  bebidas diversas    como cervejas, refrigerantes, quentão, aluá,  “capetão”,  vodka, pingas variadas, caipirinhas e caipiroscas, bem como sucos de  frutas  regionais da época. E entre as luzes coloridas, rodas-gigantes, montanhas russas, barcas-voadoras, etc., shows sertanejos e vaquejadas, vão desfilando as quadrilhas e bois-bumbás durante a noite inteira, sob o som de sanfonas, chucalhos, triângulos e pandeiros.
       É nesse cenário que Godofredo cresceu, amando as festas juninas, onde tinha a oportunidade de apresentar-se dançando com seu boi Malhadinho. Era o dono do boi e começava a ensaiar seus componentes já no mês de maio, num campinho de futebol na lá zona leste da cidade, bairro que começava a ser habitado, com grande invasão de áreas por grupos do movimento “sem teto”. Godofredo ensaiava seus brincantes para a grande disputa final no Arraial “Flor do Maracujá”,  no mês de  julho, as vezes já em agosto. Costumava concorrer com outros  grandes bois  como o “Corre Campo” cujo amo  chamava-se“Galego” ou “Garantido” cujo dono era o Zé Luiz. Tinha também o “Diamante Negro”, do Aluizio Guedes, que se destacava em suas apresentações pela exuberância das fantasias. Godofredo colecionava alguns troféus de memoráveis quadras juninas. Quando completou dezoito anos, teve que se apresentar para serviço obrigatório do exercito. Tornou-se um recruta. Sabia que a disciplina e as normas militares eram rígidas. Quando se aproximou o mês de maio, e precisava começar os ensaios do boi Malhadinho, Godofredo ficou preocupado, mas mesmo assim foi ao sargento que lhe dava instrução de preparo físico e perguntou-lhe se podia brincar com o seu boi Malhadinho mesmo sendo um recruta do exército.
-- Olha Reco, acho bom você nem pensar nisso, pois aqui a disciplina e os horários são rígidos e existem para ser cumpridos, certo?
      Ficou triste, pois o seu boi Malhadinho nunca deixara de participar das festas. Mas, como os ensaios eram lá na zona leste da cidade, começou a ensaiar seus brincantes. Entretanto, não estava satisfeito, pois o que ele gostava mesmo era de dançar como Amo do Boi, ou seja aquele que puxa os cânticos e toadas, todo vestido com roupas coloridas, chapéu com fitas e espelhos, de pandeiro na mão!...Com o corte de cabelo militar, era fácil identificá-lo com Reco. Acontece porém que quanto mais se aproximava o dia da competição, os ensaios ficavam mais intensos e se estendiam noite adentro! 
       O exército tinha patrulhas  compostas de 10 ou 12  soldados, comandados por  um cabo experiente ou um sargento. Essas patrulhas vaziam ronda nos locais de maior aglomeração, tais como festas, cinemas, praças, jogos de futebol e também nos  arraiais, já que não havia ainda sido criada a Policia Militar (PM). Essas rondas com patrulhas do exército eram chamadas Patrulha Especial (PE) e tinham como objetivo inibir a ação de desordeiros, ladrões e meliantes que se infiltrassem nessas aglomerações populares.
       Já na véspera do concurso final, o Godofredo não resistiu! Durante o ultimo ensaio, avisou sua mulher que queria brincar! Afinal, não via mal nenhum nisso, pois tinha plena consciência que ninguém ficaria sabendo. Depois de pensar muito, teve uma ideia: ia brincar de “miolo” do Malhadinho, pois lá embaixo  ninguém iria descobrir nem perguntar quem é que dançava pelo boi!...Chamou o Joca, miolo titular, e disse-lhe:
--Olha aqui Joca, vou confiar em você, que já brinca a anos no Malhadinho e é como se fosse meu irmão! O exercito não permite que o Reco brinque nas festas juninas, principalmente em boi. Mas eu tô que não me aguento!... Vou brincar de “miolo” no seu lugar, e você vai de Cazumbá, pois já conhece a estória e sabe as falas e toadas, OK?
--Certo, “broder”! Você é que manda!...
--E vou aproveitar logo hoje pra fazer o último ensaio, antes da competição lá na “Flor do Maracujá”.
       A patrulha do exército (PE) nessa noite estava sendo comandada pelo Cabo Félix, um cearense que, de tão caxias, diziam que já nascera vestindo a farda verde oliva do exercito. Pra se ter uma ideia, o Cabo Félix batia continência pra ele mesmo frente ao espelho todas as manhãs ao se acordar!... E nessa noite soube do ensaio do boi Malhadinho lá pras bandas da zona leste, onde começavam a surgir as “gangs” violentas, que posteriormente viriam aterrorizar as noite de   Porto Velho. Resolveu dar uma “batida” por lá. Quando a patrulha chegou, havia uma grande aglomeração em torno do Malhadinho, que dançava muito animado, com muito vigor, balançava o rabo, botava a língua pra fora e dava saltos passando bem perto aos curiosos que assistiam aquele ensaio. O Cabo Félix então começou a  notar que quando o Malhadinho se aproximava da patrulha, imediatamente virava de costa, balançava o rabo e se afastava aos saltos para o outro lado da roda do ensaio. Numa dessas manobras, o Cabo Félix olhou para os pés do Malhadinho e o que viu foram dois coturnos pretos e bem engraxados! Imediatamente mandou que os soldados cercassem o ensaio e, quando o Godofredo percebeu o cerco, sentiu que tinha sido descoberto, jogou o Malhadinho em cima dos soldados e passou por eles em desabalada carreira, sendo contido lá na frente pelo próprio Cabo Félix, que já o esperava:
--Tentando enganar nossa patrulha, não é seu Reco? Você não sabe ainda do regulamento militar que jurou cumprir quando foi admitido e incorporado?
--Cabo, eu só tava dançando de “miolo”, mas juro que não ia concorrer!
--Pois eu juro que é você que não tem miolo! E juro também que o Comandante é que vai decidir quantos dias você vai ver o sol nascer quadrado!
    Virou-se para seus soldados e ordenou:
--Aos costumes pracinhas! Algemas e “camburão” nesse “miolo”!
      O Malhadinho nesse ano perdeu o troféu principal, mas ganhou um premio de consolação entregue a esposa do Godofredo!

PVH-RO, 17/07/13

terça-feira, 16 de julho de 2013

O  AGENTE  FUNERÁRIO

 Samuel Castiel Jr.













         Geólogo argentino, pesquisador de jazidas de pedras preciosas na reserva Roosevelt, em Rondônia, a serviço de uma mineradora multinacional, concluiu sua missão, elaborou minuncioso relatório falando da qualidade do solo, jazidas, aluviões e ocorrência das pedras preciosas naquela reserva. Falava também de conflitos sangrentos entre índios e garimpeiros, bem como da ausência da força policial, gerando insegurança para quem se aventurasse a trabalhar naquela longinqua região. Quando voltava para São Paulo, sofreu um ataque cardíaco no aeroporto  do Belmont, hoje Jorge Teixeira, em Porto Velho-RO., foi socorrido e transportado pelo SAMU, porém foi a óbito durante o percurso, tenho chegado morto na unidade de emergência do Pronto Socorro João Paulo II. Constatado o óbito o médico plantonista assinou o Atestado de Óbito e, como de praxe, pediu que levassem o corpo para o necrotério até que os familiares o procurassem. Era um sábado a noite e o movimento muito intenso naquela unidade hospitalar. Baleados, esfaqueados, motoqueiros quebrados, vitimas do enlouquecido trânsito. O tempo foi passando, e aquela rotina avançou noite adentro! Já era tarde quando um amigo e colega do geólogo falecido chegou ao Pronto Socorro acompanhado de outro homem que se identificou como gerente e representante da empresa multinacional e empregadora do pesquisador falecido. Procurado o médico que assinou o atestado de óbito, este explicou que infelizmente o infarto foi fulminante, tendo o paciente dado entrada já morto naquele Hospital. Nada podemos fazer! –disse o médico ao gerente da mineradora.
-- E onde está o corpo doutor ?– perguntou o amigo do geólogo. Temos que providenciar o preparo do corpo, bem como o embalsamamento e o seu transporte para São Paulo, de onde seguirá para a Argentina, onde mora sua família.
-- Pois não, vocês podem ir até o necrotério que o corpo lá se encontra. Já assinei o atestado de óbito.
    Mas ao chegar ao necrotério, pra surpresa dos dois homens, lá não havia nenhum corpo! As três mesas de pedra  estavam frias e vazias!... Já nervosos, voltaram ao atarefado médico que ficou incrédulo ao saber que o cadáver tinha sumido! Chamou a enfermeira-chefe e, juntos, foram as pressas ao necrotério, constatando o que já sabiam: o corpo do geólogo havia sumido! Sem saber o que dizer nem como explicar aos amigos do morto o sumiço de um cadáver de dentro do hospital,  o médico e a enfermeira ficaram ainda mais atabalhoados:
-- Não sabemos ainda ao certo o que aconteceu!...Vou pedir a instalação de uma comissão para apurar esse fato lamentável! –disse o médico sem muita convicção!
--Doutor, o senhor me desculpe, mas nem o senhor nem comissão alguma vão apurar nada! Vou agora mesmo registrar uma ocorrência policial. Isso que aconteceu é inadmissível! – disse o representante da mineradora já quase aos gritos dentro do hospital. Ao sair, juntamente com o amigo do geólogo morto, falando alto e reclamando muito, o gerente da mineradora foi abordado por outro homem, já no estacionamento do hospital:
--Moço, por favor, tô vendo que o senhor tá muito aborrecido, e com razão! Sumiram com o corpo do seu amigo! Eu acompanhei e ouvi  tudo de longe. Sei o que aconteceu.
    O gerente que já estava quase entrando no seu carro, parou.
--O que você tá dizendo home?
--Isso mesmo que o senhor ouviu. Eu sei o que aconteceu e também sei onde está no corpo do seu amigo.
--E quem é você?
--Sou funcionário de uma funerária, vulgarmente chamado de “papa-defunto”. Mas odeio esse nome, e prefiro que me chamem de Agente Funerário. O que aconteceu foi uma tremenda atitude antiética e desrespeitosa. Sou Agente Funerário a 15 anos e nunca tinha visto isso acontecer!  Eu acompanhei o seu amigo desde o aeroporto, quando ele passou mal e foi transportado pelo SAMU. Depois que foi declarado morto e mandado para o necrotério, fiquei a espera de algum familiar dele para que pudesse tratar do funeral. Mas quando o senhor chegou e foi até ao necrotério,  um outro “papa-defunto” já tinha removido o corpo e saído por traz do hospital. Creio que o vigilante do hospital deve ser cúmplice desse vagabundo! Fui atras e chequei tudo: o corpo do seu amigo está em uma terceira  funerária concorrente. Ouvi falar que teria sido negociada sua transferência para  uma terceira funerária por um bom preço. Agora, que o senhor sabe de tudo, é por sua conta!
--O gerente da mineradora, furioso, agarrou o “papa-defunto” pelo colarinho:
--Vocês são todos iguais! Verdadeiros abutres! Não respeitam nem os mortos nem suas famílias! E tem mais, você vem comigo agora! Vamos até a delegacia mais próxima registrar essa ocorrência e você é a minha testemunha ocular viva!  E tem sorte de ainda ser “viva”!...
--Como já lhe disse, meu senhor, acho isso uma terrível falta de ética profissional. Mas, nos dias de hoje, esse mercado tá cada vez mais disputado. Quem chegar primeiro leva!...
    Na delegacia, depois do fato narrado ao delegado plantonista, o escrivão digitou os necessários depoimentos, lavrou o Boletim de Ocorrência ( B.O.)., e na sequência solicitou que a viatura policial, juntamente com uma patrulha da PM e o “papa-defunto” delator,  fossem até a funerária e trouxessem presos os responsáveis. Quando a equipe já entrava na viatura pra cumprir a missão, o delegado chamou o seu agente policial e ordenou:
--Carlão, traga TODOS os  responsáveis presos! Inclusive o corpo desse cidadão portenho!  Onde já se viu um  cadáver estrangeiro  perambulando pelas ruas de Porto Velho, de funerária em funerária,  sábado a noite, como se fosse um cão sem dono! Isso pode até gerar inclusive um mal-estar diplomático! Que plantão agitado nesse sábado, hem? Vou lhe contar!... E dirigindo a palavra para o gerente da mineradora que, bufando de raiva, quase apoplético,  tentava  acalmar-se, perguntou-lhe:
--Enquanto o senhor espera, aceita um copo d’agua ou um cafezinho?...


PVH-RO, 16/07/13

sábado, 13 de julho de 2013

O ESPELHO DE NARCISO


Samuel Castiel Jr.











         Quando  nasceu já era um bebê grande, branca e chorando forte! Seus  olhos  azuis  e os cabelos loiros, faziam-na parecer de descendência nórdica. Segundo seus pais e as próprias fotos mostravam como ela era linda desde que nasceu.  Ainda para completar chamava-se Diana, deusa da mitologia grega, como ela. Assim, costumava gabar-se de sua beleza para todos seus amigos. Na adolescência fez do seu colégio uma passarela, onde desfilava todos os dias não só para seus colegas mas, principalmente, para os professores. Incentivada pelos pais, entrou para a escola de modelo, tendo conquistado alguns resultados positivos  e comentários de que levava jeito para o “fashion”. Não queria quase nada com o colégio, apenas frequentava as aulas, conseguindo passar a custa de colegas generosos que lhe davam seus gabaritos. Assim, vivia como uma “patricinha” mimada e rebelde. Matriculou-se no Wise Up para aprender inglês, mesmo sem ter nenhuma vontade. Frequentava a Academia onde malhava para melhorar ainda mais sua aparência. Mas, sabia-se linda e tinha certeza que despertava a inveja na maioria das amigas. Era cobiçada pelos meninos, mas esnobava a todos! Não queria se envolver com ninguém. Achava-se bela, linda e maravilhosa. Sua cútis era branca e rosada, sem  mancha nenhuma sequer. Seu nariz afilado e olhos ligeiramente puxados, azuis, davam-lhe a certeza do rosto angelical. Para completar esse potencial, tinha a altura de 1,70m, pernas grossas, torneadas, pescoço esguio e longo, lábios carnudos e um bumbum arrebitado que fazia toda a macharada olhar quando ela passava. Mas ela não tava nem aí! Não queria se envolver com ninguém! Tinha um ritual, que chegou a virar  mania:  pela manhã ao levantar-se, corria para o banheiro e, frente a um  grande espelho do seu closet, admirava-se por tempo indeterminado, vasculhando pequeninos detalhes da sua beleza incomum. Olhava cada curva de seu rosto, o nariz,  os cílios longos e ligeiramente virados, a sobrancelha perfeitamente desenhada, os cabelos loiros, lisos e com discretas ondulações nas pontas. As orelhas eram proporcionais a sua cabeça, com uma inclinação perfeita, que lhe davam uma silhueta frontal majestosa, algo lembrando  Nefertiti, do antigo Egito. Ficava horas a olhar-se naquele espelho, e perdidamente apaixonada por sua estonteante beleza, perguntava mentalmente para o espelho, lembrando-se de Narciso:
-- Espelho, espelho meu, diga-me se existe neste mundo alguém mais linda do que eu?
         O espelho então nem precisava responder-lhe –pensava,  pois quem cala consente!  E sem nenhuma dúvida a sua beleza era única, universal!
          Com o passar dos anos, os seus hormônios sexuais aflorando, chegou o momento de  namorar. Mas... com quem?  Ninguém lhe interessava, os meninos ou eram “gays” efeminados ou simplesmente abestalhados, despidos de qualquer coisa interessante!... E, além do mais, a sua beleza descomunal fazia com que quase ninguém dela se aproximasse com intenção de namoro.  Aos poucos, sentiu a necessidade do aconchego de alguém, mas não sabia ao certo de quem.  Tinha certeza de que não eram seus pais, pois queria sentir um carinho diferente, alguém que tocasse o seu corpo, seus seios, seu sexo...Que lhe dissesse palavras de amor, de carinho,  que beijasse a sua boca perfeita, sentisse seus lábios carnudos. Mas como isso iria acontecer, se ninguém se aproximava dela. Sua única paixão, entretanto, era ela mesma! Amava toda aquela sua monumental beleza!  Ficava horas  frente  aquele  espelho de  seu  closet, a admirar-se todas as manhãs e a noite antes de deitar-se para mais uma noite de sono. Quando sonhava, sonhava com ela mesma, admirando a sua beleza descomunal!
         Aconteceu um dia, quando voltava pra casa, deu carona a uma colega e percebeu que algo lhe atraía para aquela moça. Não que fosse linda como ela  (isso seria impossível) nem mesmo bonita, mas era meiga e dócil, tinha um carinho todo especial por ela. Chamava-se Susi, e já se conheciam a algum tempo, mas só agora começava a prestar atenção nessa colega. Aos poucos também começou a admitir que era não só amizade, nem só desejo, era mesmo um amor homossexual. E foi ficando cada vez mais apaixonada, só andava com a Susi, não queria mais ficar longe dela. Até que descobriu que a Susi não era a pessoa que ela imaginara. Também não correspondia ao seu amor.  Era vulgar, podia-se dizer até mesmo promíscua! Mas fazer o que? Amava-a assim mesmo. Sujeitava-se até aceitar suas mentiras, só lhe pedia que jamais queria vê-la com outra mulher.  Não suportaria! Mas um dia isso aconteceu,  foi inevitável! E isso representou   um transtorno radical em sua vida! Passou dias trancada em seu quarto, sem querer falar com ninguém, sem querer alimentar-se, apesar dos insistentes chamados  e mimos de seus pais.  Já fazia dias que não procurava seu espelho. Num desses dias de profunda  e solitária depressão, resolveu olhar-se no espelho. Após fixar seu olhar por alguns minutos no seu velho amigo espelho, com a voz baixa, quase murmurando,  perguntou-lhe:

- Espelho, espelho meu, existe alguém neste mundo mais bela do que eu?
-- Você está horrível! Feia,  com sua imagem difusa,   olheiras profundas, rugas e marcas de expressão, com cabelos ressecados, quebradiços e depenteados... Todas as mulheres do mundo hoje são mais belas que você!...
         Num ataque de histerismo e fúria, atirou seu vidro de perfume francês  sobre o espelho, que se partiu  em pequeninos pedaços.
         Levada ao Hospital foi medicada na emergência e encaminhada ao serviço de pisiquiatria ambulatorial para acompanhamento. O pisiquiatra encaminhou a Diana ao analista,  que depois de umas cinco sessões com a Diana no divã, chamou seus pais e disse-lhes:
-- O caso da Diana é um caso grosseiro de narcisismo associado a homossexualismo. Para que vocês entendam melhor,  é como se existissem duas almas  em cada pessoa. Uma interior e outra exterior. A exterior é aquela que todos vem, associada ao "status", ao narcisismo, ao social, ou seja, como a pessoa é vista exteriormente.  A interior é aquela real, que só ela, as vezes,  vê. E geralmente vê quando  se despe de todo exterior, ficando a sós consigo mesma. O espelho as vezes ajuda a mostrar a essas pessoas sua outra alma interior que ninguém conhece, nem elas  próprias.  A Diana  vai precisar de apoio psicológico por algum tempo e talvez de um psicoterapeuta. O prognóstico é bom, porém ela vai precisar muito do apoio também da família. Creio que isso ela sempre teve com vocês, mas é importante que  seja dito.
    Já saindo e depois de se despedir dos apreensivos pais, o analista os interrompe e adverte:
-- Desculpem, já ia esquecendo: evitem colocar espelho no quarto da Diana pelo menos por uns seis meses...
                                                                                                                                                                      

 PVH-RO,13/07/13

quarta-feira, 10 de julho de 2013

A CIDADE DO LOBO



Samuel Castiel Jr.











     A lua já estava grande e cheia e ainda era cedo, mal a noite começara a chegar. As ruas empoeiradas, barracos cobertos de lona, paredes erguidas com tabuas toscas, material de construção espalhado por ruas e vielas. Uma brisa começava a soprar, melhorando a sensação do calor causticante que fustigara a todos durante o dia. Alguns moradores ainda tentavam trabalhar sob a meia-luz dourada da lua, ou focando lanternas para acabar de pregar tabuas em seus cômodos improvisados. Alguns meninos corriam brincando naquele cenário que mais parecia um canteiro de obras, abandonado. Aos poucos as crianças foram parando seus folguedos e correrias, os adultos parando seus trabalhos. Alguns cachorros latiam ao longe. A noite foi avançando e a lua subindo rapidamente, como um farol na noite. Já era quase meia noite, o silencio predominava naquela área de invasão da zona sul de Porto Velho. Foi então que lá longe, já nos limites com a floresta, ouviu-se o uivo de um lobo. Os moradores que ali já dormiam, acordaram-se com aquele uivado insistente e começaram a ficar incomodados. Alguns reforçaram as trancas de portas e janelas de seus barracos. As crianças se aconchegaram mais aos pais!... O que ninguém poderia imaginar é que esse lobo fosse ficar voltando  todas as  noites, enquanto a lua estivesse cheia ou crescente. No mês seguinte a estória se repetiu: um lobo uivando naquele cenário de invasão, nas noites de lua. O assunto começou a virar comentário não só no local da invasão mas também em toda a cidade de Porto Velho. A mídia passou a explorar o assunto, dando ampla divulgação e tornando ainda mais misterioso o tal lobo. Alguns moradores da invasão chegaram a dar entrevistas onde diziam ter visto o lobo: “era grande,  muito felpudo, de cor preta e arisco como ninguém, pois ao sentir a aproximação de qualquer ser vivente, fugia em desabalada carreira, sem deixar nenhum rastro!” Todos concordavam que era um lobisomem. Depois de alguns meses dessa aparição uivante, as autoridades policiais e da prefeitura resolveram investigar o assunto, pois a imprensa escrita, falada e televisada estava fazendo muito estardalhaço em cima desse bicho e, por isso mesmo, aquela área de invasão passou a ser chamada a Cidade do Lobo. Alguns outros bairros da cidade também já tinham recebido nomes sugestivos que iam desde nomes de novelas da época como “Meu Pedacinho de Chão”, a primeira novela a ser exibida nesta cidade e que, por motivo de incêndio nos estúdios  TV Globo, em São Paulo, seu final não pode mais ser retransmitido por aqui e seus atores principais foram contratados pelo Governo para contar ao vivo o final da novela no Cine Resky. A criadora e incentivadora desse bairro, por sinal, foi Dona Gilsa Guedes, esposa de um dos governadores do antigo Território Federal de Rondônia, o Cel. Humberto da Silva Guedes;   até outros como o “Caladinho”que por ser invasão, recebeu esse nome por motivos óbvios,  já que surgiu da noite para o dia, na calada da noite!...
         Mobilizada a comunidade através da Defesa Civil,  com o reforço de alguns policiais civis e militares, foi programada uma mega operação com o objetivo de capturar o lobisomem uivante. Tinha que ser em noite de lua cheia! Tudo foi então programado em sigilo para uma noite de lua, quando era certo o aparecimento do bicho peludo. Cercado o bairro, os agentes se posicionaram em pontos estratégicos,  armados com facões, fuzis, pistolas ponto 40, pedaços de pau, estilingues, pedras, etc, a espera da fera. Meia noite em ponto começaram a ouvir os uivos do lobo que fizeram muitos abandonar seus postos e  “vazar” trêmulos rumo a cidade, já contando e aumentando...Uns diziam que chegaram a ver um bicho peludo horrível!  Talvez um ET, um “Chupa-Cabra” quem sabe? Outros diziam que o chão tremeu quando o bicho  uivou, e assim por diante! Mas os agentes policiais e destemidos homens da Defesa Civil ficaram nos seus postos e foram se aproximando do local onde a fera se encontrava uivando, e que era numa estreita viela, já quase no limite da floresta. Dentro de uma pequena barraca coberta de lona, toda fechada e sem portas ou janelas, era de lá que saiam os uivos selvagens e também outros gemidos... Foram se aproximando pé-ante-pé, como verdadeiros tigres para não afugentar suas presas. Cercada a barraca, não havia como o bicho escapar! O comandante da operação, então, segurou o megafone e deu a voz de prisão:

--Fique onde está, você está cercado e preso! Caso tente fugir será morto a tiros!
   Houve um silêncio sepulcral que pareceu uma eternidade.  A seguir, aos poucos, parecendo que se moviam em câmara-lenta, foram levantando a lona da barraca e saindo, com os braços p’ra cima, primeiro um homem alto e magro e logo em seguida outro homem vestindo uma fantasia de lobo, com pelos pretos e um rabo felpudo que descia até ao chão. A luz da lua cheia, aquela cena parecia sulrrealista. Todos estavam perplexos! Sem nenhuma palavra o comandante ordenou que fossem revistados e, depois,  já com os  braços e mãos para trás, colocou-lhes as algemas. Foram “agasalhados”  no “camburão” da polícia militar e conduzidos a delegacia para lavrar o respectivo Boletim de Ocorrência (BO).
        Após ampla exploração midiática, onde as  chamadas de telejornais eram explicitas:  “O Lubsomem era um ”Lubsgay”!..., as autoridades policiais divulgaram o depoimento dos presos, os quais foram encaminhados a uma junta de médicos psiquiatras e  psicólogos antes de serem levados ao presídio. Tratava-se de mais um caso grosseiro de fetiche, onde o relacionamento homosexual  chegava as raias das chamadas perversões sexuais ou parafilias. Nesse caso, o parceiro ativo da relação, somente sentia prazer e chegava ao orgasmo se a relação ocorresse em circunstâncias difíceis e incomuns, além de que o parceiro passivo ainda tinha que estar travestido de lobo e uivando como tal. Como o próprio “lubsgay” se manifestou quando lhe foi perguntado:
--Porque você se arriscava tanto? E ainda mais vestindo essa fantasia ridícula  de lobo?
--Doutor, o que a gente não faz por amor, não é mesmo?
   Foram enquadrados e tipificados como perturbadores  da ordem, dos costumes  e da moral da comunidade. Cumpriram pena de 1 ano  em regime fechado, pois ainda não havia a chamada pena alternativa nem a progressão do regime. O bairro foi chamado por muito tempo Cidade do Lobo, hoje Conceição e Cidade Nova,  na zona sul da cidade
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                                                                                                    PVH-RO, 10/07/13