sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

O ÚLTIMO NATAL

O ÚLTIMO NATAL
Samuel Castiel Jr.















         

               A cidade estava toda iluminada com lâmpadas coloridas. O clima de festa estava presente em cada rosto. Os bares cheios de homens vazios ou não. Nas ruas se viam as figuras extravagantes do Papai Noel fazendo parte da decoração. Os “shoppings” lotados de retardatários na busca de presentes.
          Apesar da chuva fina que caía, Antenor caminhava parcialmente molhado, coberto apenas por aquela manta velha quase toda furada, e que também lhe servia de cobertor  para protegê-lo nas noites de frio. O cabelo desalinhado, esbranquiçado  e a barba grande não permitiam reconhece-lo facilmente. Suas vestes sujas e surradas completavam o perfil de um morador de rua. Quando saltou na rodoviária  e tentou pedir informação sobre como chegar ao  bairro da Consolação, percebeu que muitas pessoas dele de esquivavam, julgando-o um pedinte inoportuno. Estava cansado e com fome. Continuou  a caminhar. Seu destino era ver, nem que fosse de longe, sua antiga casa que deixara a mais de vinte anos, quando fora dado como morto numa pescaria cujo barco afundou. Fora arrastado pelas aguas da cachoeira, bateu com a cabeça nas pedras mas conseguiu agarrar-se nos galhos e  chegou até a margem do rio. Quando acordou embrenhou-se na mata pensando que estava indo no caminho certo, porém se perdeu e ficou andando em círculo até que desmaiou e, ao acordar, ficou meditando sobre o que ocorrera: estava longe do local onde seu barco afundara. A força das aguas na cachoeira, as pedras, seu desaparecimento... Tudo levava a crer que ele teria sido dado como morto. Foi aí que uma ideia começou a se formar em  sua cabeça. Estava numa situação financeira péssima. Devia um valor impagável. Mesmo que vendesse tudo que tinha, não conseguiria quitar suas dívidas. A vergonha que teria de enfrentar perante a sua família. Pensou durante todo o dia e chegou a seguinte conclusão. Aquele seguro de vida que fizera, com sua morte,  seria suficiente para sua mulher e seus filhos sobreviverem. Com essa ideia martelando sua cabeça, decidiu-se: nunca mais voltaria para sua casa. Seria melhor continuar dado como morto. Caminhou  pela mata até  uma estrada onde pegou uma carona para chegar  numa cidadezinha no interior de Minas. Ficou ali morando nas ruas, alimentando-se com o que lhe davam das sobras dos restaurantes.  Aos poucos conseguiu sair das ruas, veio o emprego, foi melhorando progressivamente.  Os anos foram se passando e ele já estava se sentindo estabilizado novamente, quando naquele dia por um acaso ouviu aqueles homens da polícia conversando com o proprietário da empresa:
----Temos certeza que se trata da mesma pessoa. Aqui temos algumas fotos. Toda nossa investigação aponta que é essa pessoa e que está trabalhando na sua empresa.
              Não teve tempo de mais nada. Saiu apressado pela porta dos fundos e deixou tudo para trás. Perambulou pela cidade e foi se mudando primeiramente de endereços e depois de cidades. Dormia em pousadas, porém quando seu dinheiro acabou foi forçado a ficar pelas ruas. Voltou a se alimentar com as sobras de restaurantes. Pedia esmolas nos semáforos. Ouvia muitos impropérios:
---Vai trabalhar vagabundo!
---Não tem vergonha marmanjo! Vai procurar emprego!
             Mais de 20 anos se passaram, não queria mais aquela vida de fugitivo. A saudade de sua família era insuportável. Foi quando então que começou pensar em voltar. Não para ficar, mas queria pelo menos ver sua família de longe. Sua mulher Verônica, seus dois filhos Valter  e Luiz que deixara tão pequenos.  Esses meninos já deveriam ser homens...
              Continuava a caminhar por aquele bairro nas ruas que tanto conhecia. Ao longe avistou seu antigo lar. Era noite e havia pouca iluminação naquele local, o que lhe permitiu maior aproximação. A casa estava toda iluminada. Muitas pessoas reunidas. Aproximou-se ainda mais. Ouviu a música que vinha lá de dentro: Noite Feliz. Aproximou-se o mais que pode, escondido pelo muro e pelas grades. Lá estavam dois rapazes que reconheceu como seus filhos. Lá estava também Verônica, um pouco mais envelhecida, porém ainda linda aos seus olhos. Havia porém um homem ao seu lado com seus braços passados por sua cintura. Sentiu um frio percorrer e invadir seu corpo. Tinha certeza que aquele era o novo marido de sua amada Verônica. E o pior é que nada podia ser feito. Tida como viúva, tinha o direito de casar-se outra vez. Quando estava perdido em seus pensamentos, ouviu aquela voz forte bem perto de si:
--- Você aí! O que está fazendo olhando pra nossa casa? Se não disser quem é você vou chamar a polícia.
     Era o Luiz, seu filho mais velho.
--- Calma meu bom jovem! Só estou assistindo a festa de vocês. Também já tive uma família...
--- Está bem, se for assim vou mandar preparar um prato com as comidas da nossa ceia de Natal. Volto já.
--- Não, não se preocupe, já estou indo embora.
--- Agora sou eu que quero e insisto que fique! Não demora nada e nada tem a perder.
      Saiu quase correndo e não demorou a voltar com um prato repleto de comidas típicas do Natal.
---Onde está você? Pedi que ficasse! Aqui está o que lhe prometi.
     Não havia mais ninguém naquele local.
      A rua deserta foi iluminada por fogos de artifício explodindo no ar. Era meia noite! Luiz então com o prato de comida na mão, voltou para dentro de casa e sua mãe perguntou-lhe:
---O que faz você com esse prato na mão?
---Fui levar comida a um mendigo que olhava lá de fora para nossa festa. Mas ele se foi antes que eu voltasse. Pareceu-me uma pessoa estranha, mas  do bem. Disse-me que só queria olhar a nossa festa pois também já tinha tido uma família  que se perdeu no passado.
---Você e seu coração mole! Largue esse prato e venha abraçar sua mãe. O Menino  Jesus acaba de nascer!
     A chuva ficara mais grossa, mas Antenor caminhava pelas ruas e suas lágrimas misturavam-se com os pingos da chuva. Ele sabia que tinha perdido tudo irremediavelmente,  inclusive sua  família por quem dera tudo, sua própria identidade. Nada mais lhe restara! Ouviu então bem longe  o sino de uma igreja chamando para a missa da meia noite. Era a missa do galo. Dirigiu-se para lá, lentamente. Ao chegar, o padre fazia o sermão, que falava do espírito de salvação com o nascimento de Cristo, que veio ao mundo para salvar o homem de seus pecados. Ficou ali como se estivesse hipnotizado. Seu corpo ardia com febre. Estava molhado, cansado e com fome mas nada sentia. Sentou-se em uma cadeira bem no fundo da igreja, num cantinho bem isolado. Aos poucos seu corpo foi sendo invadido por uma sensação de êxtase e sentiu-se como se estivesse flutuando no ar. Como num sonho,  o Menino Jesus o  chamava e mostrava-lhe o caminho que deveria seguir.
                Ao amanhecer, o padre foi acordado bem cedo pelo sacristão que o chamava insistentemente, pois havia um homem morto, sentado no fundo da igreja e, pelos trajes,  parecia ser um mendigo.


PVH-RO., 23/12/16

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

A DUPLA EMBOSCADA



Samuel Castiel Jr
        




            Ele estava postado sobre aquela pedra desde bem cedo, quando o orvalho caído durante toda  a noite deixara sua superfície úmida e escorregadia. O sol subia rapidamente no nascente e ele começava a sentir sua pele ficar suada, pegajosa. O rifle pendurado em sua costa e o chapéu de palha de abas largas completavam a figura sinistra de um matador. Tinha tudo planejado nos mínimos detalhes. Desde o dia que foi procurado por aquele desconhecido e lhe foi passada uma foto da vítima. Não tinha e nem queria saber dos dados pessoais do encomendado tais como nome, idade, estado civil, se tinha família e filhos. Nada disso lhe importava, não  lhe seriam úteis. Queria apenas o trajeto que aquele infeliz percorria de sua casa até seu trabalho, na garimpagem de pedras preciosas num igarapé bem escondido e camuflado no meio da selva densa. Muitos chamavam de trabalho sujo mas... era o que ele sabia fazer! Executava e recebia muito bem pelo seu trabalho. Pedia sempre adiantado a metade do pagamento e depois da execução recebia o restante. Dessa vez tentou saber sutilmente quem encomendara o serviço mas foi imediatamente desestimulado:
-- Olha aqui cara: você aceita ou não aceita o serviço? É pegar ou largar!... Nada de ficar fuçando com conversa “mole”. O Chefão não iria gostar nada de saber que você andou insinuando e fazendo perguntas.
-- Ok, Ok. Não está mais aqui quem perguntou!...
     Mas depois, com o passar dos dias, ficou matutando ainda por algum tempo sobre aquele homem que o contratara. Tinha os olhos da morte, frios e iguais aos seus.
       Aquele local fora escolhido minunciosamente por ele. Um local perfeito para uma emboscada. Ficava num desfiladeiro, numa escarpa de enormes  rochas escondidas pela mata e que pareciam amarradas por inúmeros cipós que passavam por cima dessas pedras como tentáculos de um invisível e gigantesco polvo. A uns setenta metros de altura, escolhera ficar de tocaia naquele ponto. De lá tinha uma visão perfeita da estrada lá embaixo. Adaptara uma luneta a seu rifle winchester para tornar sua pontaria mais precisa, fatal. Sabia que não poderia dar mais que um tiro. Sabia também que um segundo disparo seria bem mais difícil acertar o alvo, pois perderia o fator surpresa; o susto da montaria faria o animal disparar tornando sua pontaria falha mesmo com o auxílio da luneta.
         O silêncio era quase total não fosse quebrado vez por outra pelo piado da inambu distante chamando seu companheiro. Sabia que deveria ficar praticamente imóvel, pois alguns pássaros e macacos costumam avisar aos outros animais da presença de perigo ou intrusos no seu habitat. Sem dúvida alguma ele era um profissional competente ---pensava. Sua folha corrida mostrava isso. Perdera a conta de quantas almas já tinha despachado para o inferno.
          Com um binóculo olhava insistente e nervosamente para aquela curva da estrada de chão batido. Era por ali que sua vítima deveria aparecer e caminhar para a morte. A temperatura subia e o calor ficava cada vez mais intenso. Nenhuma corrente de ar soprava, nenhuma folha nas arvores se mexia. De repente, montado em seu cavalo surge na curva da estrada a sua vítima. Parecia despreocupado, com um cigarro de palha na boca, trotando em sua montaria. Posicionou-se então com o corpo deitado sobre a pedra coberta de musgo. Esperou. Prendeu a respiração já com o dedo no gatilho. Atirou. O estampido forte ecoou na mata e reverberou nas rochas.  Pássaros assustados voaram em polvorosa.  A vítima caiu ao solo fulminada pelo tiro certeiro que transfixou seu peito. Sua montaria disparou em desenfreado galope. Satisfeito consigo mesmo, o atirador levantou-se para começar a descer a escarpa pedregosa, pois ele próprio precisava constatar a morte irreversível daquele infeliz. Mal ficara de pé e outro tiro ecoou, desta vez bem próximo  ele, vindo de uma rocha um pouco acima dele. Só deu tempo de ver um rastro de fogo que o atingiu perfurando  seu peito. Olhando para cima, antes de fechar seus olhos para sempre, ainda viu aquele perfil e aquele olhar frio da morte, iguais aos seus, que tanto o impressionaram. Caiu e deslizou no lodo das pedras para o abismo da escarpa rochosa.


PVH-RO., 14/12/16

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

CARNE ESTRAGADA ou AS CURVAS-DE-RIO

           CARNE ESTRAGADA ou ( AS CURVAS-DE-RIO )

            Samuel Castiel Jr.
 









          

              Fazia uns três meses que Osvaldo   tinha    se separado do seu quarto relacionamento.       A vida dura de bancário por opção, o excesso de  trabalho no Banco, tudo conspirava para seu insucesso   nos relacionamentos. A solidão entretanto começava  a perturbar seu juízo e a fustigar seu coração.   Foi quando conversando com os colegas de Banco, começou a se interessar por sites de relacionamento. Tentou vários tipos de mulheres, umas mais novas outras mais velhas, mas logo ia se desinteressando. Finalmente, depois de algumas tentativas, Osvaldo falando com uma velha amiga, lamentou-se da sua solidão, e logo foi convidado para um churrasco em sua casa. A princípio, ficou receoso em participar, pois não conhecia as pessoas que estariam presentes naquele churrasco. Como seria no sábado, sua amiga o colocou em contato pelo “Face” com suas amigas que estariam no churrasco do sábado. Todas lhe pareceram interessantes, porém a que mais lhe agradou foi a Silvana, uma ruiva e morena de olhos claros. Pensou, pensou e fez contato com a Silvana. Sua voz também era agradável – pensou. Disse-lhe que tinha sido convidado por sua velha amiga Shirley para o churrasco do sábado.
-- O que devo levar Sil? – perguntou-lhe Osvaldo.
--Traga cerveja, de preferência a Puro Malte, que é a cerveja de minha preferência. As meninas aqui também gostam dessa cerveja. E todas estarão aqui no próximo sábado.
            Naquele sábado  Osvaldo foi bem cedo ao supermercado, comprou duas caixas  da Puro Malte e dirigiu-se para o endereço da sua velha amiga. Tinha o pressentimento que poderia arrumar uma companheira que até poderia ser mais duradoura. A casa de sua amiga era longe, nos arredores de Porto Velho-RO. A casa ficava recuada, nos fundos do terreno. O portão estava fechado com um cadeado e o Osvaldo teve que bater palmas para que sua amiga Shirley viesse abrir. Com as cervejas nos pacotes, Osvaldo entrou e foi apresentado a todas as pessoas que estavam no recinto. Colocou a Puro Malte na Freeze e observou que havia mais quatro caixinhas no congelador. A Silvana realmente era linda – pensou.  
          Quando o churrasco já estava sendo servido, Osvaldo levantou-se para pegar uma cerveja e, ao abrir a “freeze”, observou que todas as outras cervejas, exceto as que trouxera, já tinham sido consumidas. Quando comentou com sua amiga que já só havia no “freeze” as cervejas que ele trouxera, ela lhe disse que em sua casa era mesmo assim:
--Olha aqui Osvaldo – disse-lhe a Shirley, aqui em casa é assim mesmo, todo mundo bebe muito. Daqui a pouco vamos comprar mais.
    O churrasco foi rolando, o calor aumentando, até que o Osvaldo percebeu que as amigas da Shirley e também ela usavam tornozeleiras eletrônicas. Ficou surpreso e assustado. Mas, para não criar nenhum tipo de constrangimento, ele preferiu não tocar no assunto. Aproximou-se da Silvana e ficou conversando e jogando charme pra ela, que também retribuía. Suas pernas eram grossas e Osvaldo ficava imaginando: faria qualquer sacrifício para ver e acariciar aquelas pernas, pois era uma das poucas que não usava shortinho curto e enfiado na bunda, e sim calça jeans elastano , bem colada na pele. Finalmente, trocou telefone com as meninas, despediu-se e foi saindo de mãos-dadas com a Silvana. Ia pensando: meu pressentimento estava certo. Acho que consegui uma companheira e, ainda por cima, pra ninguém botar defeito – pensava. Caminharam até o portão. Ao sair tentou ainda dar um abraço apertado na Sil, mas ela se esticou toda, ficou na ponda do dedão  do pé, apoiada  numa só perna e a outra para trás, como se fosse uma bailarina e disse:
-- Não me puxe nem mais  um milímetro Osvaldo, caso contrário o hi-fi da minha tornozeleira dispara e começa a apitar.
     Osvaldo  não  era preconceituoso mas, decepcionado entrou em seu carro e não quis mais nem olhar pra trás. Aquilo era uma “gang” ! Todas aquelas meninas eram “curvas-de-rio” como dizia sua velha mãe, ou seja, atraíam todo o lixo arrastado pelas aguas. Todas eram da pesada!... E ele, Osvaldo, não era nenhum lixo! Era melhor continuar sozinho.
         Na segunda feira durante o expediente do Banco, quando lhe perguntaram como foi seu final de semana, ele disse apenas que a carne do churrasco estava estragada.


PVH-RO., 17/11/16

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

AVENTURA NA CAVERNA

AVENTURA NA CAVERNA
Samuel Castiel Jr.






             Na terna e doce adolescência, além de correr de camisa aberta e com o  peito nu, as asas da imaginação me transportavam para bem longe. Além  de correr atrás de “papagaio”, jogar peteca e pião, já havia em mim a curiosidade pelo imponderável, pela aventura, pelas descobertas. O espírito de liderança aflorava e me fazia estar sempre cercado de colegas e amigos do mesmo bairro, vizinhos ou não. Foi assim que chegou aos meus ouvidos a notícia que aguçou minha imaginação: havia uma caverna em pleno centro da cidade de Porto Velho que se estendia desde a  Av. Farquhar passavando pelas ruas Euclides da Cunha e Norte-Sul ( hoje Av. Rogério Weber ) passava  por baixo da antiga residência oficial do governador e, até onde se sabia, chegava até a Av. Presidente Dutra. Numa extensão de mais de 400 metros, ou seja, quase meio quilômetro, isso pelo que se sabia. Havia rumores que as pessoas que teriam se aventurado a explorar essa caverna teriam penetrado em grandes salões e ouviam o barulho de carros distantes, na outra extremidade, que trafegavam na Av, Presidente Dutra. Quando  teria sido construída essa caverna? Quem a teria construído? Com que objetivo? Seria um esconderijo? Um abrigo? Uma rota de fuga?  Depois de várias noites de insônia, pensando no assunto, resolvi que poderia ser fantástico explorar essa caverna, desvendar seus segredos. Não foi difícil passar essa ideia aos amigos e colegas que sempre estavam comigo e geralmente comungavam dos meus pensamentos. Consegui rapidamente juntar um grupo de mais ou menos uns seis aventureiros. Adquirimos lanternas, compramos pilhas e cordas. Marcamos o dia e a hora. Tínhamos que começar bem cedo, pois não sabíamos quanto tempo a exploração poderia demorar. Combinamos que seria melhor nos amarrarmos pelas cinturas uns aos outros. Eu iria na frente, seguido pelos outros aventureiros. Qualquer dificuldade encontrada seria comunicada aos demais com puxões na corda e assim todos estariam sempre sabendo com que eu estaria me deparando lá na frente. Combinamos também que conforme o nível de perigo ou dificuldade que eu encontrasse, eu puxaria uma, duas, três ou mais vezes a corda. Tudo certo, tudo combinado, partimos para o interior da caverna. A escuridão era total. A altura era muito baixa, de tal forma que só podiamos adentrar de bruço, arrastando o peito no chão. Liguei minha lanterna e comecei a me arrastar pelo chão úmido, amarrado pela cintura e seguido pelos outros amigos aventureiros. O silêncio era total, mas ao ligarmos as lanternas e começarmos a nos arrastar pelo chão, esse silêncio foi quebrado por  um barulho ensurdecedor. Eram milhares de morcegos que, saindo da caverna, passavam sobre nossas cabeças. O odor ficou insuportável, misturado ao farfalhar estridente e aos voos rasantes dos morcegos.
Quando aquela nuvem negra acabou de passar sobre nós, comecei novamente a me arrastar pelo chão, penetrando cada vez mais naquele interior escuro. Senti que o ar começou a ficar rarefeito. Foquei a lanterna e, bem a minha frente, uma enorme pedra obstruía nosso caminho. Arrastei-me até ela e senti que o ar passava apenas por uma fresta entre a pedra e a parede da caverna. Usando toda a minha força, consegui empurrar a pedra cerca de meio metro, o suficiente para que eu pudesse passar esgueirando-me  pela fresta.. Uma grande sala então abriu-se a minha frente. Era um salão amplo mas que logo se afunilava novamente .Foquei as paredes do salão com minha lanterna e o que vi foram ainda alguns morcegos dependurados em um lodo esverdeado, que pareceu-me musgo. Rente as paredes havia praticamente uma outra parede formada pelas fezes dos morcegos.O odor continuava insuportável,  mas não me intimidei. Continuei penetrando na escuridão.  Parei e comecei a ouvir o longe o ruído de carros que certamente estariam trafegando na Avenida Presidente Dutra, já próximo Palácio do Governo. Foi então que o odor de repente ficou insustentável. Pensei então, pela primeira vez,  em puxar a corda amarrada na minha cintura e tentar sair daquele buraco. Foi aí que senti a primeira ferroada na minha barriga. A seguir outras e outras ferroadas na barriga, no peito e nos braços foram  me colocando em pavorosa. Mas procurei não perder a calma. Foquei minha lanterna para a frente e fiz uma varredura no local. O que vi, deixou-me ainda mais nauseado. Um bicho que me pareceu um roedor, tipo mucura estava em avançado estado de putrefação, devorado por centenas de vorazes formigões. Foi então que não mais resisti e puxei três vezes a corda amarrada na minha cintura. Sabia que aquilo desencadearia um efeito em cascada junto aos amigos aventureiros. Começaram então a me puxar, mas precisei algum tempo para deslizar de volta para a porta da caverna. Confesso que me pareceu uma eternidade me arrastar de volta, tentando manter-me o mais calmo possível. Sabia que só assim poderia sobreviver aquela situação desesperadora e de pânico. Para piorar minha situação, minha lanterna começou a ficar fraca e se apagou. As pilhas chegavam ao fim. Ouvia vozes bem longe pedindo calma que já estavam próximo a porta de saída. As ferroadas me queimavam e coçavam desesperadamente. Respirei fundo quando vi a luz no fim do túnel, mas ainda distante. Arrastei-me de costa até chegar ao salão, onde pude me virar e seguir de frente. Lá fora o sol deve estar brilhando e o ar rico em oxigênio sem esse odor fétido – pensei. Quando cheguei a saída, todos estavam desesperados e de olhos arregalados, querendo saber o que tinha me apavorado tanto a ponto de pedir para voltar. Saí quase puxado pelos meus amigos, sem forças para caminhar, com câimbra nas pernas  e com feridas sangrando em todo o corpo. Quando me vi fora da caverna, e todos começaram a me perguntar o que eu tinha visto lá dentro do buraco, disse-lhes que era um monstro marsupial morto e em decomposição, que estava sendo devorado por formigas carnívoras!...Desde então minhas aventuras se limitaram a ser na superfície da terra,  longe das cavernas. O mistérios e enigmas daquele buraco até hoje continuam     povoando meus piores pesadelos.



PVH-RO., 07/11/16
                                            


        


quinta-feira, 3 de novembro de 2016

AO MÉDICO CIRURGIÃO

AO MÉDICO CIRURGIÃO

Samuel Castiel













Divina  é a tua missão sagrada
No corte fino do bisturi na carne
Quase sempre combalida, destroçada
Na iminência  da vida que já parte...

O aço que corta, a mão que sutura
Vai juntando, recompondo a anatomia
Buscando a estética,visando a cura
Trazendo de volta à vida que já parte...

Das tuas mãos renasce o corpo,
Às vezes mutilado mas com vida;
N
as tuas mãos salva-se a carne ferida,
Do homem muitas vezes já considerado morto!…

És o semi-deus que a esperança traz
És o anjo bom que cortando faz
Voltar a vida que já parte…
Cortando, suturando, recompondo

Com teu  cinzel  de verdadeira arte!...

PVH-RO., 18/10/16

AO MÉDICO

AO MÉDICO
Samuel Castiel


Trazes o bastão do amor em tuas mãos
Tua veste branca é a pureza casta
És por natureza de todas  profissões
O símbolo vivo da ciência vasta.

Representas a única esperança, o norte
Do combalido corpo que padece
És por essência a aliança
Entre a vida e a implacável morte
Que espreita o ser a cada dia que avança...

Tens a paciência, a abnegação
Para a alma aflita que sofre
Quando o corpo sofrido esmaece
Quando parece não haver mais salvação
Trazes o bálsamo da vida, da sofreguidão
Mesmo sabendo que teu gesto divino
Nem sempre teu ingrato paciente reconhece
E o inexorável tempo te esquece!...

PVH-RO, 18/10/16

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

A CONQUISTA E A CAÇAMBA



A conquista e a caçamba.
Chico Chagoso & Samuel Castiel







Chico Vira-bicho estava mais feliz que pinto naquilo. Conquistara a garota mais bonita da redondeza. Era uma paranaense alta, magra, cabelos castanhos e lisos e olhos claros. Não estava nem acreditando. O azarão da turma com aquele monumento. A moça trabalhava em uma pequena lanchonete de propriedade de dona Ziza, tia de Chico. Faltavam as formalizações de praxe: apresentar aos pais, visitar as casas etc. Mas já tudo estava engrenado. O dia mal começara mas já prometia.
Zenaide, a deusa de Vira-Bicho (VB), era simples mas muito exigente consigo mesma. Unhas, cabelos... impecáveis. Roupas de muito bom gosto e sem qualquer exagero, embora as minissaias e os tomara-que-caia estivessem em destaque no seu guarda-roupas. Mas voltemos ao VB que estava se preparando para seu trabalho.
Era uma sexta-feira de junho, em meados dos anos setenta. VB, em seus quase dezoito anos de idade já comemorava um ano de emprego fixo. Era o melhor salário entre todos seus amigos até porque eram poucos os que já trabalhavam. Era reservado tímido! Logo mais, à noite,  iria levar Zenaide  da escola até a sua residência. Conheceria seus pais.
No horário do almoço, comprou  um cinto novo, uma bisnaga de Nuget, um vidro de perfume “Madeiras do Oriente” e um frasco de laquê. Comprou também uma serrinha de unha:“Que os cabelos se apresentem ordenados e as unhas não lembrem a antiga criança rebelde”, Vira-bicho fumava "Carlton", mas em dia de festa comprava "Pall Mall". Não titubeou: comprou dois maços de Pall Mall e um de "Du Maurier" o famoso "Preto, comprido e metido a francês".
À tarde, VB ainda deu uma escapada pra  lavar, calibrar os pneus e regular os freios da sua magrela., uma  Monark Barra Dupla, 78. Nada podia dar errado. E o coração à mil.
Ficou pensando com seus botões, que noite maravilhosa ele teria com a Zenaide. Enfim, ela sempre foi a dona de seus desejos e inspirações. Sem falar nos sonhos eróticos que tinha. Acordava tesudo, muitas vezes tinha poluções noturnas. Ficava a imaginar a Zenaide com seus lábios carnudos a beijar-lhe. Seus seios fartos, seu bumbum  roliço e arrebitado. O som estridente do telefone fixo quebrou os pensamentos eróticos do VB. Correu para atender aquele chamado que vinha em hora imprópria, tirando-o de um devaneio com seu amor, platônico até então. Do outro lado da linha, aquela voz rouca que ele muito bem conhecia: uma ex-namorada, que na realidade não passara de um “peguete”.
—  VB é a sua tchutchuzinha! Hoje é sexta-feira e eu fiquei pensando que nós poderíamos dar uma saída, fazer um programa...Sei lá!?...
Quando o VB ia responder que essa ideia de sua “ex” não tinha a menor chance de acontecer, a ligação caiu. O telefone preto ficou então com aquele som apitando indefinidamente. VB desligou, mas teve a ideia de deixar o telefone fora do gancho para ter certeza que não seria mais importunado. Voltou a se preocupar com os detalhes de sua roupa, do perfume, do laquê em seus cabelos e com a sua bicicleta. Tudo tinha que estar impecável, nos seus  mínimos detalhes..Às 19 horas saiu para o encontro com a Zenaide, aquele encontro por ele tão esperado. Era a primeira vez. Já tinha combinado, VB a levaria  de bicicleta para um motel. Não podia levá-la para um motel de luxo, mas a levaria para um lugar aconchegante, um motel que tinha sido inaugurado recentemente, na saída da cidade, na BR 364, e que tinha  Vídeo-cassete com filme pornô, 10 canais de música ambiente, até mesmo   cama  redonda de colchão d”água. A hora naquele motel “ cabia “em seu bolso, pois tinha feito umas economias e valeria  a pena  investir no amor dos seus sonhos e fantasias. Já com a Zenaide sentada no varão da sua Monark de duplo varão, VB  começou a sua noitada. Tinha programado primeiramente passar num barzinho lá na zona leste onde sempre “rolava” um pagodinho. Lá iriam tomar umas “geladas”, dançar um pouco e finalmente pegaria o rumo do motel, na saída da BR. Com esses pensamentos em sua cabeça, VB ia pedalando todo feliz e cheio de amor pra dar.
“Será que ela vai cair na minha lábia?” conjecturava sob os solavancos da rua mal encascalhada. Dava até pena meter aquela magrela naquela buraqueira… Mas no final do arco-íris havia de haver ouro…  Será que ela ficaria zangada por ele mudar o percurso assim, do nada?... “‘Do nada’, uma ova, se eu pegar aquele peixe…”. - A buzina de um fusca atrás de VB fê-lo sair da transe… Mas Zenaide só sairia da aula depois das 9 da noite. Haveria um evento no colégio e dispensariam os alunos mais cedo. Resolveu tomar umas cervejas na Zona Leste, para esquentar os ânimos.
Não conseguia entender como uma cidade tão pequena tinha Centro, Zona Norte, e Zona Leste. Pingolin Mirim tinha menos de 10 mil habitantes. Só duas ruas receberam asfalto. E a Energia não cobria toda a Zona Leste. A única via de acesso era a BR 364. Mas este conto não é aula de geografia, aliás a matéria que mais reprovara  VB nos seus anos de ginásio, então voltemos ao encontro.
Quinze para as nove estava lá na frente da escola. Nervoso que nem no dia que fez a prova de Admissão ao Ginásio. Estava impaciente. “Será que ela faltou hoje?”, “Será que desistiu”, mil pensamentos permeiavam sua mente até que finalmente ela apareceu. Tão atrapalhado ficou o rapaz que só conseguiu dizer: “Sobe aí!”, apontando pra garupa da magrela. E ela mais assustada ainda, só subiu, sem nada dizer. E foram. Alguns minutos se passaram até que se iniciasse um diálogo.
—  Você quer ir direto pra casa ou quer passar em algum lugar antes? - VB quis saber.
—  Ah! Não sei! No que você tava pensando… Um sorvete?
—  Não era bem isso. Uma Cervejinha, por exemplo. Que tal?
—  Pode ser, mas eu bebo pouco. E meus pais não podem saber…E
Entraram num barzinho bem arrumado e aconchegante. Não se passou meia hora e já estavam nos maiores beijos. O barômetro de Zenaide a alertava sobre o ar pesada que caía sobre o casal… “Tá ficando quente… e úmido, não”. VB sabia que a umidade não era só no ar… “Carne em breve explodindo”.
No caminho de ida para casa de Zenaide, VB não sabia como desviar para um motel. Por sorte que passaria por  dois. Sorte ou azar. Pois pelo primeiro passou sem sequer diminuir a marcha. E logo a frente estava o segundo: “Motel Estrelinha” dizia o Neon quase sem brilho. Cerca de cinquenta metros antes do “Estrelinha” VB parou a bicicleta e criou coragem…
Antes de passar pelo segundo Motel, VB resolveu abrir o jogo: parou sua bicicleta e explicou a Zenaide que, na realidade, queria mesmo era ficar com ela no Motel Estrelinha, que estaria a duas quadras dali. Caso ela aceitasse, não iria se arrepender. Passariam momentos inesquecíveis!...
—  Mas VB, se eu ficar grávida meu pai me mata!
— Nem pense nisso: usaremos preservativo. Trouxe aqui alguns, da Jhonson & Jhonson, o famoso Jontex. Dizem que é um dos melhores, não corre o risco de furar.
Zenaide, que já estava sonhando com os momentos inesquecíveis, concordou e novamente montou na bicicleta do VB e foram os dois em busca do motel, o qual ficava numa curva daquela rua. Quando já estavam chegando ao motel, quando já viam sua  lâmpada  vermelha acesa, foi que tudo aconteceu não mais que de repente:  uma caçamba tombeira, carregada de cascalho, dobrou na curva em alta velocidade, e não deu tempo de quase nada. O VB só teve tempo de jogar a bicicleta na vala, mas a caçamba ainda tocou na sua bike, atirando o casal a distância.
No dia seguinte, na folha policial, a manchete mais chamativa dizia: “Casal indo para o motel de bicicleta foi atropelado por uma caçamba”. O nome da Zenaide foi preservado, pois ela era de menor idade.

PVH-RO., 30/09/16

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

CARNE DE SOL

  CARNE DE SOL 
Samuel Castiel & Chico Chagoso















                      
Chicão da Costela era especialista em churrascos. Gaúcho e apaixonado mesmo por assar uma carne. Até se oferecia aos amigos nos finais de semana para preparar a carne. Ele mesmo dizia que não importava o corte nem a qualidade da carne. Fosse bovina, suína, caprina, carne dura ou mole. Se fosse dura ele trabalhava a carne até que ela ficasse mole...Fazia também embutidos como linguiças e calabresas. Preparava os molhos e vinagretes. Mas, dentre as suas preferidas, a carne de sol era a que mais ele dava ênfase. Nos mínimos detalhes, até o carvão que ia para a churrasqueira, ele mesmo gostava de escolher. As facas e espetos rigorosamente limpos! Não gostava de afiar as facas e usá-las na sequência. Condenava quem afiava os facões e, sem lavá-los, ia logo cortando a carne. Dizia que o ato de afiar deixava um pó de aço ou metal nas facas que poderia contaminar a carne se não previamente lavadas,  causando até mesmo danos a saúde das pessoas. Quando era convidado para fazer um churrasco, acordava-se bem cedinho, ia ao açougue escolher as carnes, comprava tudo que iria precisar. Chegava bem antes do horário marcado, acendia o fogo na churrasqueira, esperava a fumaça se dissipar, pois a carne poderia absorver a fumaça e, também, causar danos a saúde. E disso entendia muito, pois a defumação de seus embutidos seguia padrões e protocolos internacionais. Sais de cura, madeiras nobres, fungos específicos, tudo com requinte e rigor de um mestre. Mas a perfeição é uma virtude incompatível com o ser humano. Chicão, dentro de sua própria especialidade de churrasqueiro, tinha um defeito “de nascença”. Não podia ser contrariado naquilo que dizia ser rito sagrado do churrasco. Não tolerava sequer ser questionado sobre assunto. Seu saber era soberbo e absoluto. Ele criava uma verdadeira muralha entre os comensais e a churrasqueira da qual era o guardião (adjetivo tipo onipresente…). Contava-se que certa vez, alguém jogou água na churrasqueira para diminuir a labareda e ele ficou irado a ponto de abandonar e evento deixando todos na mão.
Pois bem! Chicão foi convidado pra “queimar uma graxa”, como ele mesmo dizia nos momentos de descontração. O local era a chácara de um amigo seu que ficava nos arredores da cidade. Na verdade o patrono do churrasco estava mais pra conhecido que pra amigo. Nunca estivera antes no local, por isso  inteirou-se com o tal “amigo” sobre peculiaridades do local, da churrasqueira, numero pessoas, preferências por cortes, etc, etc. Seria um aniversário de um cunhado do proprietário. Receberiam em torno de cem pessoas para o almoço em um sábado de novembro. Ainda na sexta foi em busca dos insumos… Estava meio desolado: Na relação das carnes que lhe foi passada não constava aquela que era sua especialidade, a carne de sol . Ainda pensou em questionar os anfitriões que lhe haviam convidado. Mas, ficou constrangido em fazê-lo, pois era contratado apenas para assar e servir o churrasco aos convidados. Mesmo assim, na véspera da festa, preparou para si mesmo uma picanha maturada, de boi novo, salgou a carne colocou seus temperos e a colocou ao ar livre para desidratar. Claro que antes teve o cuidado de cobrir tudo com um véu fino para impedir a aproximação de moscas e outros insetos. No dia do evento, saiu bem cedinho para cumprir aquele ritual, ou seja, acender o fogo, preparar a mesa com as facas previamente afiadas e lavadas, onde o churrasco seria cortado e servido. Foi muito elogiado por todos os convidados que adoraram seus saborosos  cortes enfiados nos espetos. Não só o sabor  mas também o cheiro do churrasco atraía a todos que chegavam ao local. Entretanto, o mais curioso é que aquela carne de sol, que ele fizera só pra ele, foi a que mais fez sucesso. Todos queriam provar! Não sobrou quase nada para o Chicão. Os anfitriões chegaram mesmo a vir questioná-lo porque não fez mais carne de sol.
--- Não estava na relação que vocês me deram. Eu trouxe um pouco, mas só pro meu uso. Acabou que eu nem provei da minha carne de sol. Os seus convidados parece que aprovaram e comeram tudo! --- dizia o Chicão Costela todo orgulhoso.
               Naquela semana, o Chicão ficou matutando e remoendo uma ideia. Porque não fazer carne de sol pra vender. Muita gente não sabe fazer e compra qualquer carne nas feiras, açougues ou supermercados. A sua carne de sol era diferente, especia!. Teria uma boa aceitação. Assim sendo poderia ganhar uma grana extra que o ajudaria no seu orçamento mensal. Pensou, pensou e se decidiu. Comprou 100 kg de carne que ele mesmo escolheu, montou um varal alto na frente de sua casa, no início da BR 364, Km 14, no sentido Candeias do Jamari, antes do posto da Polícia Rodoviária Federal. Cortou meticulosamente a carne, salgou e a pendurou no varal, coberta por um grande véu protetor. Deveria ficar no varal umas 24 a 36 horas, ao sol,  para desidratar o suficiente. Era uma sexta-feira quando uma camionete Hillux 4 x 4 parou em sua porta e buzinou. Chicão foi ver quem era e deu de cara com um homem gordo, alto e de chapéu a” la Indiana Jones”.
--- Bom dia meu jovem! -- saudou o homem abrindo um sorriso largo. Sou Jorjão Quintela, mas conhecido com “Jorjão My love”
--- Bom dia. O que o senhor deseja seu “My love”?
--- Isso aí no varal é carne de sol? E é pra vender?
--- Sim senhor. E da melhor qualidade.
--- Quero comprar.
--- Quantos quilos o senhor deseja?
--- Quero tudo?
--- Mas Seu Jorjão,  aqui tem 100 kg de carne.
--- Eu disse tudo!  Pode ir tirando do varal e colocando na minha camionete.
--- Pois não.
            Chicão tirou toda a carne do varal e a depositou na camionete.
--- É o seguinte, meu bom amigo --- falou o “Jorjão My Love”. Sou seu quase vizinho. Minha fazenda fica daqui a uns 50 km, próximo a Itapoã D’Oeste. Hoje é sexta-feira,  você me dá o valor total dessa compra,  quando for na próxima segunda-feira bem cedo eu estarei de volta, passo por aqui e pago a sua carne, OK?  
--- Olha aqui Tchê -- respondeu o Chicão  mal humorado:  eu já salguei essa carne pra não perder!...

--- Mas...

terça-feira, 19 de julho de 2016

O AQUARIO

O AQUARIO

Samuel Castiel Jr.








A ingratidão pode ser visceral” (Samuel Castiel Jr)

  Peixes ornamentais multicoloridos, espelhados, dourados ou com listras pretas, nadadeiras diáfanas ou transparentes, cabeças vermelhas ou longas barbatanas , todos extravagantes e com nomes curiosos como Beta, Véu-de-noiva ( Kinguios Goldfish) Labius, Symphysoson discus, Colisa Lalia, Carassius Auratus, Danio Rerio, etc., todos nadando naquele aquario que reproduzia um perfeito arrecife com algas, pedras e plantas aquáticas. A luz artificial refletia num grande espelho aquelas criaturinhas nadando elegantemente. E como mágica, essa visão silente sempre me trouxe a paz de espírito, relaxando meu corpo e acalmando minh'alma.
   Construi um aquario grande em uma parede vazada no meu próprio quarto de dormir, de tal forma que quando acordava, minha primeira visão era aquele balé dos peixinhos dourados e coloridos. Uma paz interior me invadia e aquilo era uma sensação agradável que me confortava para iniciar bem minhas atividades do dia-a-dia.
   Nunca fui muito chegado a pescarias, mas no verão, quando os rios secam, as águas ficam baixas e os cardumes de peixes ficam mais abundantes, aceitei o convite para uma pescaria no rio jatuaraninha, onde os peixes estariam em abundância. Depois de algumas horas tentando pegar algum peixe incauto, meu companheiro de pesca conseguiu fisgar um Acará Regional. O peixe veio aos saltos, debatendo-se preso no anzol, num desespero de quem luta pela vida, com pavor da morte. Imaginei-me imediatamente sendo aquele peixe e um frio percorreu a minha coluna vertebral. Meu parceiro de pesca comemorou sua proeza de fisgar um Acará Regional. Realmente, para quem, depois de três horas, perdera todas as iscas e vários anzóis presos nas galheiras, era um feito digno de comemoração. Menos para o pobre do Acará Regional. Depois de retirado o anzol de sua boca, o peixe foi jogado no assoalho da canoa e ficou lá se debatendo agora pela falta de oxigênio. Uma ideia me ocorreu, de levar o peixe para o meu aquario. Mas como salvá-lo fora da água. Para isso combinamos de colocar um pouco de água no fundo da canoa e, então, inclinávamos a canoa para o lado que o peixe se encontrava, fazendo com que se mantivesse oxigenado. Mais tarde, já em terra firme, colocamos o Acará dentro de um balde com bastante água, para que suportasse a viagem até meu aquario. Ao chegar em casa corri para depositá-lo no aquario, junto aos outros peixinhos. Mas o Acará Regional estava quase inerte, parado, e com os olhos vidrados, opacos, sugerindo morte iminente. Ficou assim por algumas horas e, aos poucos foi começando a recobrar suas forças. No dia seguinte estava nadando e cheio de energia, para minha alegria. Tinha salvo a vida daquele peixinho, que fora fisgado pelo anzol e passado por maus pedaços com a falta de oxigêno. Mas felizmente ele estava salvo e graças a mim que poupei sua vida, livrando-o da frigideira. Mas para minha surpresa, o Acará começou a ficar hostil com os demais peixes do aquario, fustigando-os com tentativas de mordidas e perseguições em alta velocidade. Os demais peixes fugiam espavoridos. Acabou-se a paz do meu aquario –pensei! Alguns dias depois os peixinhos menores tipo Paulistinhas, Neóns, Collidora, Bandeira, Acará disco, etc sumiram do aquario, devorados pelo Acará Regional. O biólogo que chamei incriminou o novato por ter devorado tais peixinhos.
--O senhor não pode deixar esse peixe aí, pois ele é predador e quando está com fome não respeita os demais, principalmente se forem pequenos.
Mas aquele peixe significava muito para mim, pois eu o salvara, dando-lhe a oportunidade de outra vida. Com o passar dos dias, quando eu me aproximava do aquario para alimentar os peixes, lá estava ele, maior que todos, devorando a ração dos demais, com manobras ameaçadoras. Seus olhos me encaravam com uma expressão recriminadora. Levantava suas nadadeiras dorsais, em atitude de desafio e ataque. Chegava a chocar-se com o vidro do aquario na tentativa de me alcançar. Fiquei alguns dias a interpretar a atitude agressiva daquele peixe para comigo. Porque agia daquela forma? Senti que esse mau humor era só comigo, pois quando outras pessoas se aproximavam do aquario, nada disso acontecia. Ele continuava a nadar normalmente e o seu olhar não era hostil nem ameaçador como acontecia comigo. A atitude daquele peixe começou a me incomodar. Porque seria? Eu que o salvei, eu que insistia em deixá-lo no aquario mesmo devorando e incomodando os demais peixes.
  Naquele sábado, acordei-me como sempre e fiquei com os olhos fixos no aquario. O Acará Regional nadava lentamente, as vezes ficava parado e se escondia na madeira de um adorno que ficava submersa no fundo do aquario. Levantei-me e aproximei-me do aquario. Foi então que o Acará Regional quase saltou para fora, levantou os espinhos de sua nadadeira dorsal e ficou em atitude agressiva, de ataque. Aproximei-me ainda mais, mas em vez de jogar ração na água como sempre fazia, mergulhei minha própria mão. Imediatamente o peixe atracou-se com meu dedo indicador, mordendo-o a ponto de sangrar. Um filete de sangue escorreu e misturou-se com as águas do aquario. Num reflexo, puxei minha mão e o Acará Regional veio junto, agarrado e mordendo meu dedo. Sacudindo a mão, atirei-o ao solo. Peguei um balde, coloquei-o dentro com um pouco de água. Lembrei-me de um velho amigo que também era aquarista e criava espécies exóticas, inclusive de peixes predadores carnívoros e canibais. Quando me dei conta estava na casa desse amigo.
--Maciel, quero que me faça um grande favor.
--Pois não amigão! Em que posso ajudá-lo?
--Trouxe um peixe pra você colocar junto com o seu Oscar Tigre. É um Acará Regional.
--Sam, você sabe o que vai acontecer, não é?
--Perfeitamente. Quero ver esse desfecho!
  O peixe Ocar Tigre tem o nome científico de Astronotus ocellatus, também chamado de Apaiari. Sao peixes vorazes e alimentam-se de peixes pequenos e carne crua. Os peixinhos menores são engolidos de uma só vez!
  Quando o Maciel jogou o meu Acará Regional dentro do seu aquario, o peixe Oscar imediatamente partiu para o ataque, pois ele tem como característica ser um territorialista por excelência. O Acará Regional ainda tentou levantar suas nadadeiras de espinhos mas o Oscar Tigre foi mais rápido e abocanhou parte do corpo do Acará Regional, deixando a mostra suas vísceras e espinhas centrais. Outros ataques foram suficientes para que o Acará Regional fosse para o fundo do aquario. Aproximei-me então do aquario e olhei fixo nos olhos do meu peixe que ainda me fitava com um olhar fulminante, de ódio. Ainda tentou levantar seus espinhos da nadadeira dorsal, mas estas já não mais respondiam a seus comandos. Antes de me despedir, o Maciel chamou-me e perguntou por que tinha trazido aquele peixe para ser devorado pelo seu Oscar.
--Achei que ele não gostava de mim!…
E fui-me embora.

O Maciel balançando a cabeça, ficou rindo como se tivesse entendido a minha vingança...

PVH-RO., 19/07/16

quinta-feira, 7 de julho de 2016

A PESCARIA

A PESCARIA


Samuel Castiel Jr.


















" Nunca se deve cutucar onça ( ou cobra ) com vara curta."




                                  As águas frias e  límpidas,  como um espelho, refletiam  as  nuvens  do céu e as  frondosas arvores da mata verde. O   barco   rasgava    essa    superfície    quebrando    o    silêncio daquelas paragens. Seus  companheiros  eram:  o  único  filho  José de 12 anos, sua mulher Jussara e o cachorro Malboro. O destino era a cabeceira do Rio Preto, onde  pretendiam  pescar  principalmente a Jatuarana e o Surubim, peixes nobres da região.    Esse    era       o “hoby”  de Arthur nos finais de semana há muitos anos.Ficavam ali acampados, dormindo em barracas de lona. A noite deleitavam-se com o céu estrelado e a lua  prateada.   O   silêncio   da   mata      só era quebrado pelo grito de macacos e pássaros noturnos.        Muito longe, as vezes,  conseguiam ouvir o esturro de uma onça pintada.   A    pescaria    geralmente   era    mais proveitosa no final da tarde e início da noite, ou então ao raiar do dia, quando os peixes estão mais vorazes. O barco de Arthur era um Mercury, de 40 HP.      Um pequeno toldo com estampa de listras os protegia do sol inclemente do verão.
              Ao passar por uma curva do rio, todos foram surpreendidos por um forte estrondo e, na sequência, o barco foi perdendo velocidade até parar. Imediatamente Arthur coreu até o motor, desligando-o e constatou que sua hélice havia se quebrado ao chocar-se com uma tábua de madeira que flutuava nas águas.
---Fiquem todos calmos, não foi nada de grave – falou Arthur. A hélice do motor se quebrou ao chocar-se com uma tábua que flutuava e eu não a vi. Vamos ter que descer um pouco a favor da correnteza para que eu troque essa hélice. Ainda bem que tenho outra de reserva.
                        O barco começou a descer levado pela correnteza até que Arthur conseguiu jogar a corda e prendê-lo ao galho de uma arvore à margem do rio. Enquanto Arthur trabalhava na hélice do motor, ao longo do rio passava uma cobra d'agua nadando sinuosamente na superfície das águas, levada pela correnteza. Era uma visão interessante e curiosa, pois a cobra, como o barco quando em movimento, também quebrava aquela superfície lisa das águas, produzindo minúsculas ondas. Todos no barco estavam com os olhos voltados para a cobra que, tranquila e ecologicamente, passava. Foi quando o menino José resolveu pegar sua baladeira (estilingue), juntou algumas pedras e começou a atirá-las na cobra que passava. Arthur e sua mãe o repreenderam, mas ele continuou a fustigar a cobra com as pedras de sua baladeira. Uma dessas pedras acertou em cheio a cobra que afundou e não mais foi vista na superfície da água. O menino José comemorou gritando que conseguira acertar seu alvo. Correu em direção a sua mãe e a seu pai e, de mãos espalmadas, bateu e deu soco como um vitorioso!                               Feito o reparo da hélice, Arthur desatracou o barco, ligou o motor,e logo estavam novamente navegando em alta velocidade nas águas do Rio Preto.
                         De repente algo aconteceu: um barulho e um chiado de cobra chamou a atenção de todos no barco. Ao olhar para a traseira do barco, no assoalho e próximo ao motor, ninguém acreditou no que viu. A mesma cobra que passava a pouco tranquilamente nadando, encontrava-se agora dentro do barco, com aspecto ameaçador, chiando e pronta para dar o bote em quem dela se aproximasse. Arthur sempre foi muito precavido e nunca deixara de usar e obrigar seus passageiros a usar os coletes salva-vidas. Foi o que os salvou. Assustados, em pânico e com pouco espaço para correr, não tiveram nem tempo para raciocinar. Atiraram-se n'água, tentando se salvar da picada da maldita cobra. Ninguém soube explicar o que aconteceu. Como aquela cobra foi parar dentro do barco depois que foi atingida pela pedra da baladeira do menino José. Nadaram todos para a margem do rio, sob o comando de Arthur. Outro mistério que não conseguiram decifrar é que quando o Arthur voltou ao barco, agora armado com um pedaço de pau para matar a cobra, lá não havia nenhuma cobra, nenhum sinal da serpente. Antes de retomar a viagem, Arthur todo molhado e com cara de poucos amigos foi até ao José e, com a mão espalmada disse: bate campeão! Sua pontaria foi quase fatal! O menino José baixou a cabeça. Nenhum dos três disse mais nada até o destino final da pescaria.

PVH-RO., 07/07/16