SAMBA, CARNAVAL E SANGUE
Samuel Castiel Jr
Todo ano a estória se repetia.
Chegava a época do carnaval, vinham os ensaios das escolas de samba, a agitação
nas quadras, os concursos e a disputa dos sambas de enredo, a organização das
alas e seus passistas, as fantasias, etc. Valfrido era passista e panderista da
ala de bateria e a sua escola, Acadêmicos do Salgueiro, naquele ano estava
cotada para ficar entre as três primeiras colocadas do Grupo-A, isto se não
fosse a grande campeã do Carnaval. Como todo bom sambista, Valfrido também era
chegado a um rabo-de-saia. E, nessa época, quando se aproximava o período do
Carnaval, aproveitava para fazer “chover-na-sua-roça”. Mulato, quase negro,
Valfrido era exímio panderista. Fazia acrobacias com o pandeiro, jogando-o pra
cima e aparando-o com a sua propria nuca,
agachando-se entre as pernas “saradas” das mulatas e fazendo vibrar as
platinelas entre as coxas suadas das sambistas.Tudo isso, lógico, sem perder a ginga e o
rítimo do samba. Nesse ano porém, Valfrido estava sentido algo diferente, desde
o dia que botou os olhos na nova sambista Alcina, que passou a frequentar os
ensaios. Era filha de Floriza, que já fora porta-bandeira e hoje era
responsável pela Ala das Baianas. Diziam as bocas miúdas, que tinha um xodó com
Presidente da Escola, Amarildo “Tijolo”. Mas a verdade é que Valfrido desde que
vira Alcina sambando, ficou encegueirado pela nova passista. Dezoito aninhos,
seu corpo era escultural. Pernas e coxas grossas, torneadas, o bum-bum
arrebitado, sua feições pareciam de uma vestal negra! Quando ela sambava,
Valfrido deixava até seu pandeiro cair...Perdia o equilíbrio! Quanto mais o dia
do desfile se aproximava, mais ele perdia a
cabeça, passando horas a imaginar-se na cama com aquela musa negra do
carnaval. Chegava a sentir o cheiro bom do seu sexo. Devia ser um tesão na cama,
pensava.
–Valfrido, tira essa mina da tua cabeça, rapaz – dizia seu melhor amigo e também passista, Beto da Cuíca. Ela é afilhada do home, cara! O manda-chuva da escola. Dizem até as bocas de cuiú-cuiú que ele anda ficando com ela. É a mina do zóio dele. Eu aviso a você, cara, e quem avisa amigo é: toma muito cuidado!
–Valfrido, tira essa mina da tua cabeça, rapaz – dizia seu melhor amigo e também passista, Beto da Cuíca. Ela é afilhada do home, cara! O manda-chuva da escola. Dizem até as bocas de cuiú-cuiú que ele anda ficando com ela. É a mina do zóio dele. Eu aviso a você, cara, e quem avisa amigo é: toma muito cuidado!
Os dias se passavam, toda semana os
ensaios da bateria e sua madrinha, dos passistas, da porta-bandeira e
mestre-sala, das alegorias, dos destaques, os carros alegóricos ganhando “vida”
nas oficinas e nos barracões. Enfim, tudo se afunilando para o apogeu do grande
dia do desfile no sambódromo. Valfrido tinha se aproximado de Alcina e notou
que ela também admirava a sua intimidade com o pandeiro. Cada vez mais
próximos, começaram um flerte com olhares, toques e passes de samba. Muitas
pessoas chegaram a adverti-lo, sempre temendo por sua integridade física, uma
vez que violência e truculência eram as tônicas de Amarildo Tijolo, Presidente
da Escola, que muitos diziam envolvido com drogas, comércio ilegal de armas e
prostituição no morro. Era um homem ignorante, perigoso e frio. Já tinha mandado um
recado para o Valfrido, que ficasse longe da sua afilhada Alcina, quando viu os
dois se pegando no entorno do barracão.
O sorteio da Liga das Escolas de Samba
confirmou para sábado as quatro horas da manhã o desfile do Salgueiro.
Consultada a metereologia acenava com tempo nublado sujeito a chuvas esparsas
naquela madrugada em todo o Estado do Rio. As arquibancadas, frizas e camarotes estavam lotados, tudo pronto para o grande desfile.
Na cabeceira da pista, Valfrido
esquentava sua Ala de bateristas:
-- Vamos lá moçada! A hora tá
chegando! Vamos mostrar a garra do Salgueiro. Não esqueçam: entrar e sair no
Recuo no tempo certo, sem perder a marcação nem as paradinhas!
Foi quando avistou Alcina. Estava
simplesmente deslumbrante e nua. Seu corpo tinha sido pintado pelos mesmos
artistas da equipe da Globo, que produzem a Globeleza. Estava lindíssima e,
sambando, parecia flutuar!...Não resistiu: afastou-se da sua Ala de Bateria e,
sempre com o pandeiro na mão e sambando, foi ao encontro daquela deusa negra. Deu
um beijo em seu rosto e sussurrou ao seu ouvido:
-- Você tá irresistível! Um tesão
ambulante!... Quero você hoje comigo depois do desfile.
-- Val, pára com isso! Volta pra
sua bateria. Nosso desfile já vai começar.
Valfrido olhou pro lado e viu um
palhaço que chamou sua atenção. Não sabia que sua escola nesse ano trazia uma
ala com palhaços.
Um clarão se abriu no céu e fogos de
artifício multicoloridos começaram a explodir anunciando o início do desfile.
Foi nesse exato momento quando os
fogos ainda estavam pipocando que Valfrido recebeu três tiros a queima-roupa,
que se confundiram com as explosões da bateria de fogos. Quase ninguém
percebeu o que aconteceu mas alguns ainda viram aquele palhaço com uma bola
vermelha no nariz fugindo rapidamente e se misturando na multidão.
Valfrido caiu no chão junto com seu
pandeiro. Uma poça de sangue começou a se formar no asfalto. Na sua roupa
branca formou-se grande mancha vermelha. Alcina que viu sua queda, quando
percebeu o que acontecera, correu para ele e se abaixou suspendendo sua cabeça.
Um filete de sangue escorreu de sua boca. Os fogos de artifício ainda estavam estouravam no céu. Com a voz fraca e quase inaudível ainda falou:
-- Os fogos estão lindos! E sua
cabeça pendeu inerte.
A voz do Tijolo surgiu ampliada por um
megafone que trazia em sua mão, gritando pra todos que o desfile já tinha
começado e a comissão de frente já estava se deslocando. A polícia já tinha
sido chamada e iria investigar e apurar o assassinato do sambista. O Salgueiro
não poderia ser prejudicado por mais um acerto-de-contas.
-- Vamos que vamos Salgueiro!
PVH-RO, 27/01/13
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