UM ROSTO NA VIDRAÇA
Vivia meus 16 anos. Naquele dia meu
pai chegou eufórico para o almoço. Olhou para minha mãe, apontou o dedo para
mim e disse:
---Lolita, consegui um emprego pra
ele. Já começa amanhã.
Sem
ter o que argumentar, restou-me continuar ouvindo meu pai explicar
entusiasmado que era numa agência bancária do Banco da Lavoura, que estava
chegando a nossa cidade. Conhecera o gerente através de um amigo comum e, de
imediato, já conseguira meu emprego. Seria muito bom para mim começar a
trabalhar naquela idade, pois poderia aprender muitas coisas, valorizar o
trabalho e sair da molecagem. O serviço era bem simples. Tinha que limpar a
agência antes de começar o expediente. E para isso tinha que chegar a agência
bem cedo, ou seja, as 6:00 h, fazer o serviço e voltar para casa, tomar banho,
vestir a roupa social com gravata, voltando ao banco para abrir a agência as
8:00 h em ponto, de 2ª. a 6ª.feira. O horário do almoço era das 12 as 14:00 h,
sendo que a tarde o expediente era interno. Como nossa casa era relativamente
próxima a agência, não precisava de condução, podendo mesmo ir e voltar a pé.
Aos sábados a tarde, tinha que encerar a agência, deixando-a bem limpa e
cheirosa para a nova semana. Também era minha função fazer o café para os
demais funcionários. Para quem nunca tivera nenhum emprego, nenhuma
responsabilidade a não ser correr de peito aberto atrás de papagaios, jogar peteca e futebol,
seria uma experiência absolutamente nova.
Mal o dia clareava, já
estava eu a caminho do banco, cheio de entusiasmo e disposição, pois com o
tempo comecei a gostar do meu trabalho e “vesti a camisa”. Apesar desse meu
primeiro emprego ter me afastado dos folguedos pueris, lá estava eu bem vestido,
com uma gravata no pescoço e me sentindo muito útil ao serviço bancário, como
se fosse grande agente econômico da Wall Sreet. As vezes, confesso, que me
sentia constrangido quando entravam na
agência colegas e amigas minhas pra falar com o gerente e ele batia na
campainha me chamando:
-- Traga dois cafés por favor!
No início ficava envergonhado
diante das pessoas que me conheciam, mas depois fui me acostumando e algum
tempo depois já não me importava muito nem com a campainha nem com os cafés.
Meus colegas de trabalho eram
muito eficientes e me tratavam muito bem. Lembro-me do Mizerani (gerente) do
Guinard, do Ormiro, do Zé Lima que antes do banco abrir era açougueiro no
Mercado. Lembro-me também do Valter Santos e do Oziris Lobo. E apesar de tantos
anos que já se passaram, esses amigos são muito nítidos na minha memória.
Certo dia saí cedinho de casa,
como sempre. As ruas sem asfalto e o capim ainda estavam molhados do orvalho
caído na noite. Ia com a cabeça cheia de pensamentos, remoendo a saudade dos
folguedos da infância que estavam ficando para trás. De repente olhei para o
lado e o meu olhar foi surpreendido por um rosto olhando-me furtivamente
através do vidro de sua janela. Era uma casa do tipo chalé, de dois pisos.
Aquele rosto angelical, de mulher loura e linda, porque estaria ali, postada,
aquela hora, ao raiar do dia, a me olhar passando na rua? Atônito com esse
olhar enigmático, fiz que não a vi, pois não quis que percebesse que eu a
descobrira. Poderia nunca mais voltar a olhar-me passando... E continuei o meu
caminho, pensando que daria tudo para vê-la outra vez, a olhar-me através da
sua janela. Nesse dia, as horas pareciam que se arrastavam, o banco parecia que
não mais ia encerrar aquele expediente, tão ansioso eu estava para saber se
aquele rosto lindo voltaria a me olhar no dia seguinte, através da vidraça. No
dia seguinte passei e olhei de soslaio,
e como um raio, numa fração de segundos, nossos olhares se cruzaram. Meu
coração recebeu uma carga de adrenalina e acelerou. Acho que ruborizei.
Trabalhei ainda naquele Banco por um
ano, quando pedi demissão pois tinha que continuar meus estudos fora do Estado.
Mas enquanto eu continuei passando naquela rua, bem cedinho, lá estava aquele
rosto enigmático na vidraça. Muitos anos se passaram e até hoje ele ainda povoa
minhas recordações. Porque ela me esperava apenas para me ver passar, sem
nenhum aceno, sem nenhum sorriso, sem um gesto sequer? Nunca tive e sei que
nunca vou ter essa resposta. Foram apenas um rosto e um olhar que se perderam
através da vidraça, mas que marcaram indelevelmente a minha memória.
PVH-RO, 10/02/14
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