AVENTURAS DO SERINGAL
( ANOS DOURADOS )
Samuel Castiel Jr.
Parte da minha adolescência foi
marcada por férias que eu passava no seringal
São Carlos, do meu pai, no alto Jamari. Nos meus inquietos quinze anos,
meu passeio preferido era viajar com meu pai para o seringal. Lá eu podia tudo,
ou seja, podia brincar do que eu
quisesse, sem os olhos vigilantes e repreensores da minha mãe. A aventura
começava já na viagem, subindo o rio Jamari dentro de um batelão, numa viagem
que durava quatro dias e quatro noites. O rio caudaloso, largo, com suas águas
barrentas e escuras. O silencio da floresta nas margens do rio com árvores
altas e frondosas. O canto dos pássaros
e todo seu equilíbrio ecológico, só era quebrado pelo ruído do motor do nosso
batelão (barco) que ia cortando aquelas águas e subindo o rio contra a veloz
correnteza. Vez por outra passava o tronco de uma árvore caída, descendo o rio abaixo, com pássaros aquáticos
tipo garças, biguies e mergulhões nele
pousados, que afundavam sempre que
enxergavam alguma refeição naquelas águas barrentas. Também eram frequentes
tartarugas e jabotis que subiam na barranca para pegar sol e quando avistavam
nosso barco saltavam e mergulhavam imediatamente. Revoada de pássaros
coloridos, araras, periquitos e curicas passavam com frequência sobre nós, quebrando
o silencio da floresta e se misturando com o barulho do nosso motor de popa. A noite a lua
era nossa luminária celestial, com sua luz prateada penetrando em
nosso barco e deixando uma trilha de luz na superfície do rio. Nessa penumbra
enluarada, o silêncio da mata se tornava mais enigmático, muitas vezes quebrado
por ruídos indecifráveis. Grandes
felinos e outros milhares de animais de hábitos
noturnos certamente eram os responsáveis por aqueles esturros e gemidos
que me enchiam ao mesmo tempo de curiosidade e pavor.
Nossas refeições eram basicamente
conservas enlatadas, xarque e ovos. Almoçávamos as onze e meia e jantávamos as
18:00h. Na selva a noite chega rapidamente e com ela os insetos, que veem
atraídos pela luz da embarcação e também pelo nosso sangue. Depois do jantar
tentávamos dormir, mas nossa embarcação continuava cortando as águas barrentas.
Com um possante farol que iluminava nossos caminhos, os olhos atentos do
prático de bordo iam sinalizando as manobras necessárias para desviar dos
troncos caídos que passavam com velocidade arrastados pela correnteza e representavam grande risco aos
navegantes noturnos em caso de colisão. Antes
de pegar no sono, sentava-me com meu pai,
tripulantes do barco e outros passageiros, na maioria seringueiros que meu pai
contratava em Porto Velho para o corte da seringa. A conversa falava de
estórias de seringais e da floresta, repletas de valentia e mistérios, entre
uma pitada e outra de cigarros de palha, varando a noite até que o sono ia
derrubando um por um. Quando o sol ainda nem despontara, as 5:00h, já havia
movimentação no barco: era o cozinheiro
acendendo o fogão e logo sentíamos o cheiro do café, de ovos mexidos com bacon fritos para o chamado quebra-jejum. Quando o
dia realmente clareava todos já estavam acordados para mais um dia de viagem,
continuando a subida daquele rio que parecia não ter mais fim. O sol era sempre
muito forte e o calor insuportável, pois o vento que cortava nossos rostos
também era quente. As noites muito frias e úmidas.
No seringal havia um casarão central
com algumas casas no seu entorno. Todas cobertas de palha. O casarão abrigava
meu pai e pessoas da família, quando raramente iam visitá-lo. Alem dessas
pessoas também moravam no barracão a cozinheira e o capataz João Ferreira, primeiro tropeiro e
homem da
confiança de meu pai. Nas casas do entorno moravam outros funcionários
como outros tropeiros e o gerente com sua família. Também havia alojamento para
seringueiros que precisassem ficar hospedados por ali até seguirem para suas
colocações no interior da floresta. Havia também o armazém, onde eram guardados
os mantimentos, armas e munições, bem como alguns silos para guardar as pelas de borracha que chegavam mensalmente a
fim de serem transportadas para Porto Velho, onde eram comercializadas com o
Banco da Amazônia S.A., o BASA.
De tantas estórias que ouvi aqueles
homens contarem nas noites que passava no seringal, muitas me chamavam a atenção
e até hoje povoam minha memória daqueles tempos quando eu corria nas margens do
rio Jamari, brincando com a cadelinha “Putz”, uma viralata que meu pai
levou para lá e com quem fiz grande
amizade. As vezes ia pescar no rio, jogava o anzol, amarrava a linha na arvore
e esperava o peixe puxar. A “Putz” também me ajudava, ficando de olho na linha.
Quando esta começava a esticar ela começava a latir, chamando minha atenção
para o peixe fisgado. O desagradável dessa pescaria eram as pragas de
mosquitos, piuns, borrachudos e abelhas que insistiam em nos atacar mesmo que
estivéssemos com roupas de mangas compridas, luvas, e as calças enviadas em
botas. Sempre esses bichos achavam um jeito de me picar. E como sempre fui
alérgico, produziam um verdadeiro
estrago no meu corpo. Mas mesmo assim gostava de ir a beira do rio pescar, pois
ali via centenas de borboletas de todas as cores que, quando pousadas, formavam
um verdadeiro tapete multicolorido. Periquitos em bandos também pousavam nos
barreiros a margem do rio para completar suas refeições, fazendo um alvoroço
peculiar. Achava fantástica aquela
natureza rude, bruta e simples, que só
tinha a mim e a “Putz” como testemunhas. Brincava o dia inteiro, com um
estilingue pendurado no pescoço e uma sacola de pedras ou palanquetas de chumbo
amarrada na cintura tipo uma pochete. Meu pai não queria que eu me afastasse
muito do barracão, pois o perigo poderia estar em qualquer
parte. Mas, ouvindo as estórias contadas por aqueles seringueiros,
ficava com meu imaginário aguçado: queria ver a cobra grande que poderia
engolir um homem inteiro ou comer um boi e ficar com sua cabeça de chifres pra fora até que ela
apodrecesse e caísse, quando então voltava a sua vida normal. Queria ver também
o macaco gogó-de-sola, que atacava seringueiros, pegando-os de surpresa na
mata, pulando em seu pescoço e sufocando-os até a morte. Dava tudo pra ver uma
onça pintada, o maior felino da Amazônia, atacando e devorando um porco do mato
ou um viado. Queria ver também o Saci-Pererê, com uma perna só, fumando seu
cachimbo; a Mãe-da-Mata, o Uirapuru, com
seu canto sedutor e encantador; enfim queria ver tantas figuras lendárias que
os seringueiros acreditam e juravam já
ter visto ou se relacionado com elas em
algum momento de suas vidas solitárias
em plena selva. Algumas estórias pareciam mais reais que outras. Algumas eram
tão fantasiosas que dava vontade de rir.
Era então que meu pai me beliscava por baixo da mesa tosca iluminada por
lamparinas. O João Ferreira, capataz e homem de confiança de meu pai, tinha
umas estórias que impressionavam a todos, mas que me deixavam com uma pulga
atrás da orelha e com vontade de rir. Contava ele que certa vez, quando
trabalhava em outro seringal, no Rio Machadinho, pra chegar até lá, tinham que
atravessar algumas corredeiras e cachoeiras. O barco sempre muito pesado, com
muitas pessoas e cheio de mercadorias,
tinha que atravessar essas cachoeiras com muito cuidado. Homens
habilidosos chamados de práticos, iam guiando e orientando o melhor caminho,
enquanto outros com grandes varas empurravam e desviavam o barco entre enormes
pedras, cobertas de limo. Mesmo assim, o barco de vez em quando se chocava com
essas pedras jogando homens naquelas águas revoltas, que eram infestadas de
peixes elétricos, chamados de puraqués. Esses peixes são capazes de produzir
ondas de choque de até mil volts. Quando encontram açaiceiros a beira dos rios,
produzem choques nas suas raízes fazendo com que caiam cachos de açaí, que servem de alimento para eles. Pois bem,
segundo o João Ferreira, quando os homens caiam nas águas revoltas das
cachoeiras, os puraqués acertavam choques em suas jugulares, matando-os
instantaneamente. Não sei porque, depois
dessa, tive vontade incontrolável de rir!...Tomei outra vez um forte beliscão
de meu pai.
Certa vez estávamos sentados para o almoço
e sobre a mesa havia uma panela fumegante, de onde saia um vapor com um cheiro
agradável de comida gostosa. As pessoas que se serviam, pegavam o braço de um
macaco que repousava sobre um prato vazio e limpo e, com ele, se serviam da
farinha utilizando a mãosinha peluda como se fora uma concha. Claro que na panela,
aquele ensopado cheiroso,no leite da castanha, era do dono daquela mão. Fiquei enjoado e me recusei
a comer. Foi preciso o cozinheiro
improvisar alguma outra comida que continha pra variar feijão, charque e
ovos. Todos ficaram surpresos com a minha recusa, pois juntamente com o mutum,
uma ave galinácea, constituem uma das
melhores iguarias da selva.
São muitas as aventuras vividas
naquele seringal. O que parece incrível pra nós, acontecia por lá. Meu pai tinha um seringueiro o mais velho de todos, acho que já tinha uns
70 anos e, juntamente com sua mãe de aproximadamente 90 anos, viviam em uma
colocação distante, a cerca de 8 horas do barracão em montaria de jegue. Pois
bem, esse casal de mãe e filho, já estavam no seringal do meu pai quando ele
chegou, a mais de vinte anos. Quando
raramente vinham a cidade, tinham o tique de ficar se batendo e se abanando com
as próprias mãos, como se estivessem matando ou espantando mosquitos, piuns,
borrachudos ou abelhas que não existiam mas que os atormentavam por longos anos
no interior da floresta. Havia também relato de homicídios cometidos por seringueiros
que eram traídos, ou que tinham suas companheiras estupradas por outros
seringueiros que saiam de suas colocações, andavam horas ou até dias para
espreitar e pegar as mulheres que ficavam sozinhas enquanto seus maridos
estavam no corte das seringueiras, pois saíam geralmente quatro horas da manhã
só retornando as 18, espaço quando suas mulheres indefesas ficavam a mercê da
insânia de seringueiros tarados e sem
mulher
Como dizia meu pai, muitas vezes
ele tinha que ser o padre, o delegado e o médico, já que tinha quase sempre que casar, prender
ou medicar as pessoas que precisavam da sua ajuda.
São muitas as recordações
daquela época, quando corria todo encapotado com aquelas roupas que me deixavam
mais parecido com um apicultor, seguido pela “Putz”.
Quando o preço da borracha se
tornou inviável, a maioria dos grande
seringais declinou e enveredou pelo garimpo em busca de jazidas de cassiterita
( estanho ) pois grandes jazidas desse minério foram detectadas na Serra da
Imburana, cujo principal filão estava
nos igarapés do seringal Massangana. Meu pai antes de vender o Seringal São Carlos ainda organizou várias
expedições juntamente com o Plinio Benfica em busca desse minério. Mas
já não era a mesma coisa. Nessas expedições não havia lugar para crianças ou adolescentes.
Pesquisavam exaustivamente os igarapés, assentando e levantando acampamentos
quase que diariamente. Realmente era muito cansativo eu não queria mais me
arriscar. Além do mais foram surgindo outros tempos, outras brincadeiras e eu
sem me dar conta fui ficando adulto. Aquelas aventuras e aquele
pedaço da floresta ficaram e
ainda povoam as minhas lembranças, como uma época boa e inocente da adolescência, e que hoje fazem parte das minhas reminiscências como verdadeiros
anos dourados!
PVH-RO, 03/04/14
Nenhum comentário:
Postar um comentário