O ÚLTIMO NATAL
Samuel Castiel Jr.
A cidade estava toda iluminada com lâmpadas coloridas. O clima de festa estava presente em cada rosto. Os bares cheios de homens vazios ou não. Nas ruas se viam as figuras extravagantes do Papai Noel fazendo parte da decoração. Os “shoppings” lotados de retardatários na busca de presentes.
Apesar da
chuva fina que caía, Antenor caminhava parcialmente molhado, coberto apenas por
aquela manta velha quase toda furada, e que também lhe servia de cobertor para protegê-lo nas noites de frio. O cabelo
desalinhado, esbranquiçado e a barba
grande não permitiam reconhece-lo facilmente. Suas vestes sujas e surradas
completavam o perfil de um morador de rua. Quando saltou na rodoviária e tentou pedir informação sobre como chegar
ao bairro da Consolação, percebeu que
muitas pessoas dele de esquivavam, julgando-o um pedinte inoportuno. Estava
cansado e com fome. Continuou a
caminhar. Seu destino era ver, nem que fosse de longe, sua antiga casa que
deixara a mais de vinte anos, quando fora dado como morto numa pescaria cujo
barco afundou. Fora arrastado pelas aguas da cachoeira, bateu com a cabeça nas
pedras mas conseguiu agarrar-se nos galhos e chegou até a margem do rio. Quando acordou
embrenhou-se na mata pensando que estava indo no caminho certo, porém se perdeu
e ficou andando em círculo até que desmaiou e, ao acordar, ficou meditando
sobre o que ocorrera: estava longe do local onde seu barco afundara. A força
das aguas na cachoeira, as pedras, seu desaparecimento... Tudo levava a crer
que ele teria sido dado como morto. Foi aí que uma ideia começou a se formar em
sua cabeça. Estava numa situação
financeira péssima. Devia um valor impagável. Mesmo que vendesse tudo que
tinha, não conseguiria quitar suas dívidas. A vergonha que teria de enfrentar
perante a sua família. Pensou durante todo o dia e chegou a seguinte conclusão.
Aquele seguro de vida que fizera, com sua morte, seria suficiente para sua mulher e seus
filhos sobreviverem. Com essa ideia martelando sua cabeça, decidiu-se: nunca
mais voltaria para sua casa. Seria melhor continuar dado como morto. Caminhou pela mata até
uma estrada onde pegou uma carona para chegar numa cidadezinha no interior de Minas. Ficou
ali morando nas ruas, alimentando-se com o que lhe davam das sobras dos
restaurantes. Aos poucos conseguiu sair
das ruas, veio o emprego, foi melhorando progressivamente. Os anos foram se passando e ele já estava se
sentindo estabilizado novamente, quando naquele dia por um acaso ouviu aqueles
homens da polícia conversando com o proprietário da empresa:
----Temos certeza que se trata da mesma pessoa. Aqui temos
algumas fotos. Toda nossa investigação aponta que é essa pessoa e que está
trabalhando na sua empresa.
Não teve
tempo de mais nada. Saiu apressado pela porta dos fundos e deixou tudo para
trás. Perambulou pela cidade e foi se mudando primeiramente de endereços e
depois de cidades. Dormia em pousadas, porém quando seu dinheiro acabou foi
forçado a ficar pelas ruas. Voltou a se alimentar com as sobras de
restaurantes. Pedia esmolas nos semáforos. Ouvia muitos impropérios:
---Vai trabalhar vagabundo!
---Não tem vergonha marmanjo! Vai procurar emprego!
Mais de 20
anos se passaram, não queria mais aquela vida de fugitivo. A saudade de sua
família era insuportável. Foi quando então que começou pensar em voltar. Não
para ficar, mas queria pelo menos ver sua família de longe. Sua mulher Verônica,
seus dois filhos Valter e Luiz que
deixara tão pequenos. Esses meninos já
deveriam ser homens...
Continuava a caminhar por aquele bairro nas ruas que tanto conhecia. Ao
longe avistou seu antigo lar. Era noite e havia pouca iluminação naquele local,
o que lhe permitiu maior aproximação. A casa estava toda iluminada. Muitas
pessoas reunidas. Aproximou-se ainda mais. Ouviu a música que vinha lá de
dentro: Noite Feliz. Aproximou-se o mais que pode, escondido pelo muro e pelas
grades. Lá estavam dois rapazes que reconheceu como seus filhos. Lá estava
também Verônica, um pouco mais envelhecida, porém ainda linda aos seus olhos.
Havia porém um homem ao seu lado com seus braços passados por sua cintura.
Sentiu um frio percorrer e invadir seu corpo. Tinha certeza que aquele era o
novo marido de sua amada Verônica. E o pior é que nada podia ser feito. Tida
como viúva, tinha o direito de casar-se outra vez. Quando estava perdido em
seus pensamentos, ouviu aquela voz forte bem perto de si:
--- Você aí! O que está fazendo olhando pra nossa casa? Se
não disser quem é você vou chamar a polícia.
Era o Luiz, seu
filho mais velho.
--- Calma meu bom jovem! Só estou assistindo a festa de
vocês. Também já tive uma família...
--- Está bem, se for assim vou mandar preparar um prato com
as comidas da nossa ceia de Natal. Volto já.
--- Não, não se preocupe, já estou indo embora.
--- Agora sou eu que quero e insisto que fique! Não demora
nada e nada tem a perder.
Saiu quase
correndo e não demorou a voltar com um prato repleto de comidas típicas do
Natal.
---Onde está você? Pedi que ficasse! Aqui está o que lhe
prometi.
Não havia mais
ninguém naquele local.
A rua deserta foi iluminada por fogos de
artifício explodindo no ar. Era meia noite! Luiz então com o prato de comida na
mão, voltou para dentro de casa e sua mãe perguntou-lhe:
---O que faz você com esse prato na mão?
---Fui levar comida a um mendigo que olhava lá de fora para
nossa festa. Mas ele se foi antes que eu voltasse. Pareceu-me uma pessoa
estranha, mas do bem. Disse-me que só
queria olhar a nossa festa pois também já tinha tido uma família que se perdeu no passado.
---Você e seu coração mole! Largue esse prato e venha abraçar
sua mãe. O Menino Jesus acaba de nascer!
A chuva ficara
mais grossa, mas Antenor caminhava pelas ruas e suas lágrimas misturavam-se com
os pingos da chuva. Ele sabia que tinha perdido tudo irremediavelmente, inclusive sua família por quem dera tudo, sua própria
identidade. Nada mais lhe restara! Ouviu então bem longe o sino de uma igreja chamando para a missa da
meia noite. Era a missa do galo. Dirigiu-se para lá, lentamente. Ao chegar, o
padre fazia o sermão, que falava do espírito de salvação com o nascimento de
Cristo, que veio ao mundo para salvar o homem de seus pecados. Ficou ali como
se estivesse hipnotizado. Seu corpo ardia com febre. Estava molhado, cansado e
com fome mas nada sentia. Sentou-se em uma cadeira bem no fundo da igreja, num
cantinho bem isolado. Aos poucos seu corpo foi sendo invadido por uma sensação
de êxtase e sentiu-se como se estivesse flutuando no ar. Como num sonho, o Menino Jesus o chamava e mostrava-lhe o caminho que deveria
seguir.
Ao
amanhecer, o padre foi acordado bem cedo pelo sacristão que o chamava
insistentemente, pois havia um homem morto, sentado no fundo da igreja e, pelos
trajes, parecia ser um mendigo.
PVH-RO., 23/12/16
Muito bom, em que pese ser triste. Um bom roteiro para um filme. Abraços, Zé Carlos
ResponderExcluirExcelente! Triste e Melancólico.
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