A VIZINHA E
O MORCEGO
Samuel Castiel Jr.
Quando ela
se mudou para a estância onde eu morava, confesso que fiquei constrangido, pois
eram apenas dois quartos, divididos por uma parede de madeira. Enquanto só eu
morava ali, dava tudo certo. Mas uma mulher, “coroa”, separada da minha cama
apenas por uma delgada parede de madeira, tinha certeza que não iria dar certo.
Fiquei a pensar como pode uma mulher vir querer morar aqui? Era uma casa velha,
tosca, de madeira, sendo que na parte de baixo funcionava uma fábrica de
mosaicos e em cima ficavam o escritório dessa fábrica e mais dois quartos. O
banheiro era comum e ficava no final do corredor. A poeira era infernal, pois
subia da fábrica de mosaicos, que usava
cimento peneirado manualmente. O calor era intenso, pois o teto era muito
baixo. No corredor havia uma treliça que ia até quase a cobertura. Graças a
essa treliça tínhamos a pouca ventilação, que também trazia o pó de cimento. A
noite apenas uma lâmpada iluminava toscamente o nosso corredor. Nas noites de lua,
entrava também uma réstia de luz prateada través da treliça. A escada que dava
acesso aos cômodos, tinha degraus quebrados e balançava quando passávamos por
ela. Talvez única vantagem de morar ali
era a localização, ou seja, a Avenida Serzedelo Correia, área nobre no coração
de Belém-Pará.
Amália era o nome da vizinha, que
passou a ocupar aquela moradia comigo,
dividida apenas por uma parede de madeira. Era uma mulher branca mas com
cabelos de negra, pernas grossas, tendo mais ou menos seus 40 anos e, pelo que
se via, bem vividos! Era sozinha, parecia não ter amigos nem amigas. Também não
fazia questão de tê-los. Confesso que fiquei incomodado quando ela foi morar
ali. Mas, como estudante de medicina, passava o dia na faculdade e a noite ia
estudar na casa de algum colega. Quando nos encontrávamos no corredor eu a
cumprimentava, mas dificilmente respondia. Acho que vivia de mal humor,de mal
com a vida. As vezes chegava tarde da noite e acabava me acordando com o
barulho dos seus saltos no piso de madeira. Não se acompanhava nem trazia ninguém
a reboque. Pelo menos nas vezes que eu percebia suas chegadas nas escuras
madrugadas. Era uma figura quase enigmática.
Foi numa noite de inverno quando tudo aconteceu. Era sábado e eu estava
dormindo desde a tarde, pois tinha virado a noite toda estudando para fazer
prova de anatomia no sábado pela manhã. O nosso corredor estava escuro, pois
nem eu nem a vizinha tínhamos nos levantado para ligar a luz do corredor quando
anoitecera. De repente a vizinha se levantou, abriu a porta do seu quarto e
acendeu a luz do corredor. Dirigiu-se para o banheiro e não demorou muito para
dar um tremendo e assustador grito. De um salto pus-me em pé e corri para ver o
que provocara aquele grito de pavor na minha estranha vizinha. Encontrei-a
pálida, gritando e apontando para cima, enrolada em uma toalha de banho. Olhei
e vi um grande morcego que, assustado com a luz e a n ossa presença, passou a
dar voos rasantes sobre nossas cabeças. Corri e peguei uma vassoura para abater
o bicho. Mas foi aí que o morcego passou a nos desafiar. Voava em nossa direção
como se fosse um caça, desviando-se no último segundo graças ao seu radar
natural. O bicho ficou feroz e emitia grunido ou chiado que o tornava ainda mais
ecabroso. A vassoura na minha mão não conseguia acertá-lo pois ele era mais
rápido. Num desses voos rasantes ele acertou a cabeça da vizinha que, para se
livrar do bicho azarento, deu um grito e um pulo, fazendo com que caísse a
toalha que trazia enrolada ao seu corpo. Correndo nua passou por mim e
pelo morcego, entrando na primeira porta
que encontrou aberta e que, coincidentemente, era a do meu quarto. Trancou a
porta e foi preciso muita conversa explicando que o vampiro já tinha voltado
para as trevas, saindo por cima da treliça do corredor por onde deveria ter
entrado. Quando decidiu abrir a porta do meu quarto, Amália já estava enrolada
no meu lençol, mas quando se virou de costa para mim, o lençol escorregou um
pouco e perguntei-lhe então que mancha preta era aquela que estava atrás do seu
ombro esquerdo. Foi aí que a vizinha teve outro ataque histérico, gritando e se
sacudindo toda, como se quisesse se livrar do maldito morcego. Jogou-se nos
meus braços aos prantos e desmaiou. Tive que passar a noite toda acalmando seus
soluços e tremeliques, tentando mostrar-lhe que o morcego fora embora morder e
chupar outro pescoço, e que a mancha preta em seu ombro esquerdo era o seu
velho e conhecido sinal de nascença, que os médicos chamam de nevus pigmentado.
Desde essa noite passamos a ser bons amigos. Acho que nossa amizade necessitava
da interface de um morcego.
PVH-RO, 13/02/14
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