O SORVETE
Samuel Castiel Jr.
Essa guloseima gelada sempre foi meu
sonho de consumo nos tenros anos da infância. Era como um prêmio que nossos
pais nos davam quando aos domingos nos levavam a praça para brincar e tomar sorvete. Quantas vezes nos
perguntavam se desejávamos ir ao cinema, ao circo ou tomar sorvete. O meu voto
era sempre a favor do sorvete. Meus irmãos chegavam a ficar irados pois mais
lhes apetecia assistir a um filme de Tarzan ou de Faroeste. Assistir Jhon Wayne,
Victor Mature ou vibrar com o seriado de “O Zorro”. Ver o Globo da Morte, o
palhaço, a mulher de barba ou o atirador de facas para eles era mais atrativo do que o sorvete. Chegávamos
a praça quando o sol já se punha, comíamos pipocas e depois tomávamos sorvete.
No intervalo brincávamos de “camon-boy” com revolveres de espoleta, da Estrela.
Meu irmão Mimon, o mais velho, era cadeirante, pois nunca chegara a andar com
suas próprias pernas devido a um parto prolongado no interior do Pará, que o
deixou com a sequela permanente de uma paralisia cerebral. Nós tínhamos que
levar o Mimon na sua cadeira, mesmo que as vezes isso atrapalhasse um pouco
nossas correrias e brincadeiras. Acontece
que meu pai fazia tudo que o Mimon pedisse a ele, pois o tratava como um filho
muito especial, enchendo-o de mimos e carinhos. Certo vez meu pai falou que
iria nos levar no próximo domingo para
tomar sorvete na praça. Meus outros irmãos vieram falar comigo que seria melhor
ir ao cinema, pois ia passar nas telas do Cine Lacerda “Tarzan, o Rei da Selva”.
Protestei e disse que, como sempre, meu voto seria para o sorvete. Sabendo do
tratamento especial que meu pai dava ao Mimon, eles fizeram loby e conseguiram
que meu pai, como sempre, satisfizesse a vontade do Mimon, ou seja, levaria
todos ao cinema. Não tive argumentos para dissuadir meu pai. Fomos todos ao
cinema. Acontece que aprendi a lição. Em outras vezes, ficava a semana inteira
no ouvido do Mimon, dizendo que seria lançado um novo sorvete delicioso, com
uma cobertura especial. Acabei vencendo dessa vez e fomos todos para a praça,
tomar sorvete e comer pipocas. Mas, meus irmãos gêmeos não entregaram os
pontos. Prepararam uma armadilha que por algum tempo deu certo: ao receber sua
bolota de sorvete de morango numa casquinha bem torrada, o Auristélio que era
um dos gêmeos, colocou-a em sua boca e a engoliu de uma só vez. Isso foi o
suficiente para que ele perdesse o fôlego e caísse para trás. Meus pais e todos
nós ficamos apavorados, encerrando nosso passeio e voltando todos pra casa,
apreensivos. Muitos finais de semana se passaram sem que voltássemos a praça
Mal. Rondon, nem tomássemos mais sorvetes. Acho que eles até enjoaram de tanto
ir ao cinema ou ao circo. Um belo dia, concordaram que devíamos voltar a praça
para brincar, comer pipocas e novamente tomar sorvete. Acontece que todos
podiam ter esquecido da queda do mano, menos eu. Fiquei ao seu lado e quando
ele recebeu o sorvete, adiantei-me e o
impedi de engolir a bolota de uma só vez. Como ele foi tomando o sorvete
pausadamente, nada de mais lhe aconteceu. Tentei explicar para nosso pai da
estratégia montada pelos meus irmãos gêmeos, mas ele não acreditou em mim. Era
muita astúcia para uns garotos de 10 anos! Daí pra frente, para evitar que a
bola de sorvete fosse engolida de uma só vez, eu me postava ao lado do meu
irmão e ficava vigilante. Bastava que eu me descuidasse um pouco para que ele
engolisse toda a bola do sorvete de uma só vez e caísse pra trás, sufocado,
desmaiado. Percebi aos poucos que aquela estratégia era muito verdadeira para
ser apenas uma simulação. A bola de sorvete pode ser de que sabor for, quando engolida de uma só vez faz o guloso se engasgar e também
desfalecer por alguns segundos. Aprendi então que, por incrível que pareça, há
certas pessoas que gostam e se acostumam com esse desmaio, como se fosse um “barato”,
um cheiro forte num lenço ensopado de lança-perfume.
Por alguns anos ainda continuamos
indo a praça Mal. Rondon, até que as namoradas e as paqueras foram substituindo a
pipoca e o sorvete. Foi um tempo colorido da minha infância!
PVH-RO, 12/3/14
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