O RECO E O BOI MALHADINHO
Samuel Castiel Jr.
São muitos os bairros que participam de
concursos de quadrilhas e boi-bumbás nas festas juninas aqui em Porto Velho.
Sem dúvida o grande concurso acontece no
Arraial “A Flor do “Maracujá” onde as barraquinhas vendem comidas típicas tais
como vatapá, tacacá, maniçoba, caruru, galinha a cabidela, bacalhau a Gomes
de Sá,
etc., além churrascos e
churrasquinhos de gato com carnes bovina e caprina, bebidas diversas como cervejas, refrigerantes, quentão,
aluá, “capetão”, vodka, pingas variadas, caipirinhas e
caipiroscas, bem como sucos de frutas regionais da época. E entre as luzes
coloridas, rodas-gigantes, montanhas russas, barcas-voadoras, etc., shows
sertanejos e vaquejadas, vão desfilando as quadrilhas e bois-bumbás durante a
noite inteira, sob o som de sanfonas, chucalhos, triângulos e pandeiros.
É nesse cenário que Godofredo cresceu,
amando as festas juninas, onde tinha a oportunidade de apresentar-se dançando
com seu boi Malhadinho. Era o dono do boi e começava a ensaiar seus componentes
já no mês de maio, num campinho de futebol na lá zona leste da cidade, bairro
que começava a ser habitado, com grande invasão de áreas por grupos do
movimento “sem teto”. Godofredo ensaiava seus brincantes para a grande disputa
final no Arraial “Flor do Maracujá”, no
mês de julho, as vezes já em agosto.
Costumava concorrer com outros grandes
bois como o “Corre Campo” cujo amo chamava-se“Galego” ou “Garantido” cujo dono
era o Zé Luiz. Tinha também o “Diamante Negro”, do Aluizio Guedes, que se
destacava em suas apresentações pela exuberância das fantasias. Godofredo
colecionava alguns troféus de memoráveis quadras juninas. Quando completou
dezoito anos, teve que se apresentar para serviço obrigatório do exercito. Tornou-se
um recruta. Sabia que a disciplina e as normas militares eram rígidas. Quando
se aproximou o mês de maio, e precisava começar os ensaios do boi Malhadinho,
Godofredo ficou preocupado, mas mesmo assim foi ao sargento que lhe dava
instrução de preparo físico e perguntou-lhe se podia brincar com o seu boi
Malhadinho mesmo sendo um recruta do exército.
-- Olha Reco, acho bom você
nem pensar nisso, pois aqui a disciplina e os horários são rígidos e existem
para ser cumpridos, certo?
Ficou triste, pois o seu boi Malhadinho
nunca deixara de participar das festas. Mas, como os ensaios eram lá na zona
leste da cidade, começou a ensaiar seus brincantes. Entretanto, não estava
satisfeito, pois o que ele gostava mesmo era de dançar como Amo do Boi, ou seja
aquele que puxa os cânticos e toadas, todo vestido com roupas coloridas, chapéu
com fitas e espelhos, de pandeiro na mão!...Com o corte de cabelo militar, era
fácil identificá-lo com Reco. Acontece porém que quanto mais se aproximava o
dia da competição, os ensaios ficavam mais intensos e se estendiam noite
adentro!
O exército tinha patrulhas compostas de 10 ou 12 soldados, comandados por um cabo experiente ou um sargento. Essas
patrulhas vaziam ronda nos locais de maior aglomeração, tais como festas,
cinemas, praças, jogos de futebol e também nos
arraiais, já que não havia ainda sido criada a Policia Militar (PM).
Essas rondas com patrulhas do exército eram chamadas Patrulha Especial (PE) e
tinham como objetivo inibir a ação de desordeiros, ladrões e meliantes que se
infiltrassem nessas aglomerações populares.
Já na véspera do concurso final, o
Godofredo não resistiu! Durante o ultimo ensaio, avisou sua mulher que queria
brincar! Afinal, não via mal nenhum nisso, pois tinha plena consciência que
ninguém ficaria sabendo. Depois de pensar muito, teve uma ideia: ia brincar de
“miolo” do Malhadinho, pois lá embaixo ninguém iria descobrir nem perguntar quem é que
dançava pelo boi!...Chamou o Joca, miolo titular, e disse-lhe:
--Olha aqui Joca, vou
confiar em você, que já brinca a anos no Malhadinho e é como se fosse meu
irmão! O exercito não permite que o Reco brinque nas festas juninas, principalmente
em boi. Mas eu tô que não me aguento!... Vou brincar de “miolo” no seu lugar, e
você vai de Cazumbá, pois já conhece a estória e sabe as falas e toadas, OK?
--Certo, “broder”! Você é
que manda!...
--E vou aproveitar logo hoje
pra fazer o último ensaio, antes da competição lá na “Flor do Maracujá”.
A patrulha do exército (PE) nessa noite
estava sendo comandada pelo Cabo Félix, um cearense que, de tão caxias, diziam
que já nascera vestindo a farda verde oliva do exercito. Pra se ter uma ideia,
o Cabo Félix batia continência pra ele mesmo frente ao espelho todas as manhãs
ao se acordar!... E nessa noite soube do ensaio do boi Malhadinho lá pras
bandas da zona leste, onde começavam a surgir as “gangs” violentas, que
posteriormente viriam aterrorizar as noite de
Porto Velho. Resolveu dar uma “batida” por lá. Quando a patrulha chegou,
havia uma grande aglomeração em torno do Malhadinho, que dançava muito animado,
com muito vigor, balançava o rabo, botava a língua pra fora e dava saltos
passando bem perto aos curiosos que assistiam aquele ensaio. O Cabo Félix então
começou a notar que quando o Malhadinho
se aproximava da patrulha, imediatamente virava de costa, balançava o rabo e se
afastava aos saltos para o outro lado da roda do ensaio. Numa dessas manobras,
o Cabo Félix olhou para os pés do Malhadinho e o que viu foram dois coturnos
pretos e bem engraxados! Imediatamente mandou que os soldados cercassem o
ensaio e, quando o Godofredo percebeu o cerco, sentiu que tinha sido
descoberto, jogou o Malhadinho em cima dos soldados e passou por eles em
desabalada carreira, sendo contido lá na frente pelo próprio Cabo Félix, que já
o esperava:
--Tentando enganar nossa
patrulha, não é seu Reco? Você não sabe ainda do regulamento militar que jurou
cumprir quando foi admitido e incorporado?
--Cabo, eu só tava dançando
de “miolo”, mas juro que não ia concorrer!
--Pois eu juro que é você que
não tem miolo! E juro também que o Comandante é que vai decidir quantos dias
você vai ver o sol nascer quadrado!
Virou-se para seus soldados e ordenou:
--Aos costumes pracinhas!
Algemas e “camburão” nesse “miolo”!
O Malhadinho nesse ano perdeu o troféu
principal, mas ganhou um premio de consolação entregue a esposa do Godofredo!
PVH-RO, 17/07/13
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