CORONEL DE BARRANCO
Samuel Castiel Jr.
“ Na Amazônia o homem trabalha para escravizar-se” – Euclides da Cunha
Essa figura caricata aparece no
cenário do ciclo da borracha, povoando predominantemente a região norte do
País, mas tendo como matriz principal os seringais do Acre. Tinham quase
sempre, invariavelmente, o mesmo perfil, ou seja, na maioria eram homens rudes, ignorantes, brutos,
esbanjadores, autoritários, sem estudo e muito ambiciosos. Apesar desse perfil,
no fundo, alguns deles ainda eram capazes de atos de bondade.
O ciclo da borracha acontece mais
ou menos entre os anos de 1876 a 1926 , e se caracteriza pelos altos preços da
borracha nas bolsas de europeias. A Amazônia com a maior floresta do planeta e
clima tropical, dispunha das condições ideais onde floresciam imensos seringais
da hevea brasiliensis. A produção da borracha brasileira atinge seu
auge até que teve sementes e mudas da
hevea surrupiadas com a complacência dos próprios brasisleiros e levadas
para Londres pelo inglês Henry A. Wickmam, onde iriam florescem no jardim
botânico de Kew Garden de Londres, antes de serem levadas para o plantio
ordenado em Singapura e na Malásia, segundo os fatos relatados no magistral romance de Claudio de Araújo Lima, intitulado "Coroneis de Barranco". A chamada “belle époque” dos seringalistas,
sem que eles percebessem, estava com seus dias contados. Mesmo assim,
continuavam a esbanjar dinheiro nas pensões de Manaus e Belém, fumando charutos
cubanos, sem se aperceber do risco fatal que seus negócios iriam enfrentar. Já
em 1914, a produção da borracha oriental supera a brasileira, coincidindo com o
início da Primeira Grande Guerra. A borracha brasileira perde o valor
drasticamente, sendo que nesse ano a sua produção não passou das 36 mil
toneladas, contra 150 mil toneladas da borracha oriental. O declínio e o fim
desse ciclo estavam estabelecidos.
Coronel Joventino Florêncio, era um
homem branco, forte, baixo mas atarracado, tinha bigodes grossos e cheios.
Usava um chapéu com abas grandes que fazia parecer sua cabeça pequena para o
corpo. Tinha a voz branda e falava baixo. Casado, com seis filhos, sendo quatro meninos e duas
meninas. Dona Inês, sua esposa, também alagoana, era uma esposa dedicada,
cuidava dos filhos e fazia-lhe todos os gostos. Homem rude, ambicioso e ig-
norante, cujo perfil o credenciava como coronel de barranco. Morava em Porto
Velho, mas seu seringal ficava no Vale do Guaporé, estendendo-se por mais de
quatro mil hectares de terras, cuja produção de borracha rendia o suficiente
para dar ao Cel. Joventino uma vida de esbanjador. Cobria sua esposa Inês de
joias de ouro de 18 kilates, dando-lhe presentes todas as vezes que viajava
para Manaus ou Belém, com a finalidade de fechar grandes contratos de venda de
borracha e comprar mercadorias para seu armazém no seringal. Nessas viagens,
que demoravam cerca de dois meses, Cel. Joventino gostava de vestir-se com
ternos de linho puro, bem engomados, calças vincadas e gravatinhas tipo
borboleta de bolinhas. Tinha uma coleção
de diversas cores. Gostava também de usar sapatos mocassim, de pelica. Os
perfumes de sua preferência eram os franceses. Bebia whisky, champanhe e
licores também importados. Costumava frequentar as melhores pensões de mulheres
em Manaus e Belém. Numa dessas suas viagens, arrumou um xodó com
uma paraense morena, de coxas grossas, que
fazia ponto na Travessa 1º de março. Quase não voltou mais
para o seringal!... Onde chegava era tratado com todas as honras pelas donas
dos bordéis. Pagava bebida para todas as
mulheres que sentavam em sua mesa. Porém tinha as suas preferidas. Baforando
charutos cubanos, deixava os ambientes esfumaçados, como o rastro de um
esbanjador. Pagava muito bem todas as mulheres que com ele deitavam, dava
presentes valiosos para elas e para as cafetinas que lhe traziam as meninas
mais novas e mais recentemente chegadas a pensão. Com o Cel. Joventino não tinha tempo ruim! –
diziam as cafetinas, estimulando as meninas e ficarem com ele. Deixava saudade
e também muito dinheiro quando tinha que voltar para o seringal. Mas tinha a
certeza que seu gerente lá estava, tomando conta de todo aquele seu império e
que seu problema não era dinheiro! A borracha produzida nas suas terras eram da
melhor qualidade. Tinha comprador certo no exterior. Seus 200 seringueiros
trabalhando nas mais distantes e espalhadas colocações, produziam o suficiente
para que ele pudesse se divertir com aquelas mulheres jovens e fogosas!...Enfim
não tinha nenhum problema que pudesse
afligi-lo ou tirar o seu sono. Sua mulher Inês como sempre dedicada, tomando
conta da casa e dos seus filhos. E nada lhe faltava! Todos na cidade a
respeitavam, era a mulher do Coronel Joventino. Portanto, nada tinha que lhe
pudesse afligir. Aliás, quase nada, pois nas ultimas contratações que fez de
seringueiros, vieram alguns que eram metidos a valentõe. Eram c hamados de
brabos. Gente do sertão da Paraiba e de Pernambuco, que chegaram a Porto Velho
fugindo da seca e precisando de trabalho. Tinha contratado alguns desses brabos,
pois apesar de não terem quase nenhuma experiência na extração e coleta do
látex, pareciam muito interessados em aprender o manuseio e a prática do
extrativista da borracha. Além de tudo eram homens fortes, acostumados a
intempéries da seca do nordeste. Sua única preocupação com eles é que não
pareciam gostar das normas implantadas nos seringais, ou seja, as mercadorias necessárias
para mantê-los no mato durante o mês, deveriam ser obrigatoriamente compradas
no armazém do seringal, com os preços exorbitantes que o patrão estipulasse.
Afinal, o custo para essas mercadorias chegarem até aquelas brenhas de mato era
muito alto. Além do mais, o patrão tinha que ter uma boa margem de lucro, pois
os seringueiros pagavam essas mercadorias e víveres com sua produção de
borracha – argumentava quando alguém o questionava. O Cel. sabia que era uma
vida difícil, mas nada podia fazer, pois entrava nessa labuta quem dela
precisava! Já tinha tido alguns problemas no passado com seringueiros que se
revoltavam com as normas do patrão, mas todos tinham sido devidamente punidos e
alguns mais rebeldes até mesmo castigados. Jamais aceitava ter sua autoridade
questionada, sequer ameaçada por qualquer um desses arigós que por aqui chegavam sem eira nem beira, pediam
emprego a ele que com pena do miserável acabava por empregá-los. Em troca
queria apenas que fossem respeitadores, honestos e produzissem muita, mas muita
borracha para o seringal. Não aceitava aqueles que eram solteiros, pois
costumavam arrumar confusão na tentativa de roubar a mulher dos outros. Também
não eram aceitos aqueles que tinham muitos filhos, pois crianças adoeciam e
acabavam morrendo, dando muito trabalho e responsabilidade ao patrão, além de
tirar o seringueiro da sua rotina de produção. Quando chegava o final do mês, a
maioria ficava sempre devendo, pois sua produção era pífia, insuficiente para
quitar seus débitos no armazém. Assim, o seringueiro ficava mais tempo no
seringal, uma vez que só poderia pedir pra sair quando estivesse sem débitos na
casa. Ele, Cel. Joventino, achava isso
tudo muito justo, pois afinal, todos podiam comprar os gêneros que quisessem no
seu armazém que era sempre muito bem sortido.
Numa de seus retornos ao seringal,
o coronel ficou sabendo que o Abdias, um dos novatos que contratara mais
recentemente, estava praticando furto de borracha, vendendo para invasores
clandestinos que passavam periodicamente na sua colocação, distante dos olhos
do coronel. Chamou seu capataz Valadão e o tropeiro Josias, homens de sua
confiança, mandou que fossem de surpresa até a colocação do Abdias, checassem
tudo, trouxessem toda a sua produção de borracha, e caso ele se metesse a
besta, dessem uma pisa nele. Podiam dizer que foi o coronel que mandou e que
caso ele continuasse a furtar a borracha para vende-la a clandestinos, não iria
viver para apanhar outra surra!...Assim foi feito, trouxeram toda a produção e
deixaram o pobre Abdias todo moído de chutes e ponta-pés.
---Isso é pra você aprender a não
roubar mais o patrão, seu nêgo vagabundo! – dizia o Valadão, chutando suas
costelas.
Passaram-se semanas, o coronel sempre de olho nos seringueiros que queriam dar uma de espertos,
ameaçando sua autoridade e tentando fazê-lo de bôbo.
Cumprindo sua rotina matinal, o Cel
Joventino acordou 5:30h da manhã, tomou seu café puro com farofa de xarque,
comeu algumas broas com ovos mexidos que sua cozinheira preparava-lhe todas as
manhãs e foi para o armazém conferir os estoques de mercadorias, bem como o
livro de contabilidade onde eram registrados todos os movimentos de caixa de
cada seringueiro, e também a receita dos
contratos de venda. Analisou todos os empréstimos feitos ao Banco da Amazônia
(BASA) nos últimos anos. Pela primeira vez
em toda sua vida no ciclo da borracha, teve uma sensação de que os
negócios do seringal não iam tão bem. O
preço da borracha brasileira começava a despencar!... Lá pelas 9:00 horas
chamou pelo Valadão, mas como não teve resposta, lembrou-se então de tê-lo mandado sair bem cedo para investigar
e dar umas porradas em outro seringueiro que estaria também roubando a produção
para vendê-la a clandestinos. Tomou um suco de carambola que estava na jarra em
sua mesa e saiu do armazém, rumo ao seu barracão. Ao sair, ouviu o piado de uma
inhambu, e pelo que conhecia, era uma inhambu azul. E ele sempre gostou muito de
comer inhambu ao molho pardo, prato que sua cozinheira preparava como ninguém.
Voltou ao armazém, pegou uma espingarda 20, com cartuchos e saiu atrás daquele
piado da inhambu. Andou naquela vereda próximo ao barracão, depois foi entrando
no matagal até chegar próximo ao rio. O piado da inhambu foi ficando mais forte
até que, de repente, surgiu em sua frente o nêgo Abdias, mas não deu tempo nem
chance para o coronel atirar. Puxou primeiro o gatilho de sua espingarda e uma
língueta de fogo saiu do cano de sua arma, ao mesmo tempo que na camisa branca do
coronel, uma enorme mancha de sangue surgiu no buraco que se formou em seu peito.
A seguir o nêgo Abdias aproximou-se do coronel moribundo que arfava em seus
últimos suspiros:
--- Morre velho filho da puta!
E chutando o corpo do coronel, arrastou-o
até a barranca do rio e o atirou ribanceira abaixo. O sangue ainda esguichando
do peito do coronel, manchou as águas barrentas do rio Mamoré, acabando
com mais um coronel de barranco,
que não chegou a ver o irremediável fim do opulento ciclo da borracha.