VALAS
Samuel Castiel Jr.
A antiga cidade de Porto Velho possuía
inúmeras valas. Sem rede de esgoto, as valas estavam em quase todos os bairros.
E por elas escorriam desde águas pluviais até substâncias mais poluídas e
contaminadas, as vezes até mesmo
excrementos, onde habitavam ratos, baratas, insetos, cobras e lagartos. Na
época das chuvas torrenciais, essas valas serviam para drenar as águas e
levá-las em direção ao rio. Eram profundas e largas. Passavam na frente ou no
quintal das casas. As pessoas tinham que improvisar pequenas pontes para entrar e sair de suas
residências. Algumas delas, dependendo do terreno, continham lodo, lama
escorregadia e até mesmo movediça.
Uma senhora pioneira desta cidade,
chamada Dona Anita, esposa do Seu Arruda, foi vitima dessas valas. Nos fundos
de sua casa, na rua Campo Sales, próximo a Av. 7 de Setembro, passava uma
enorme vala que desaguava em uma galeria de águas pluviais e esgotos, estendendo-se por baixo de onde
está hoje a loja Marisa, passando também por baixo do Cine Lacerda, do antigo Banco
Sudameris para desembocar no rio madeira. Após uma forte e torrencial chuva, a
vala transbordou e inundou o quintal da Dona Anita, que foi ver o que estava
acontecendo, e na tentativa de desobstruir a vala, caiu e foi arrastada pelas águas
revoltas e barrentas. Sua irmã Sidrone que viu tudo, correu e chamou quem estava
por perto. Dona Anita então foi resgatada da galeria, em baixo do Cine Lacerda,
puxada pelos cabelos, pois usava longas tranças. O curioso é que saiu incólume,
sem nenhum arranhão sequer e, ainda por cima, com os óculos de grau que usava!
Ela era espírita!...
Talvez por uma questão cultural importada do sangue português, era hábito
algumas residências abrir uma pequena venda
geralmente de cachaça ou de alguns gêneros de primeira necessidade, com
uma espécie de janela que dava acesso para a rua. Ali se postavam históricos
pinguços e boêmios que passavam o dia e até altas horas da noite bebericando
pinga e falando da vida alheia.
“Capote” era um criolo grande, exímio
tocador de violão. Tanto tocava como bebia pinga. Bebia para ter inspiração –
dizia ele. Gabava-se ainda que bebia bem
e tinha sorte, pois era capaz de beber sozinho mais de duas garrafas de pinga
sem dar vexame e voltando pra sua casa já pela madrugada, de bicicleta e com seu violão pendurado nas
costas. Tocava de tudo, mas principalmente boleros e samba-canções com os
repertórios da década de 50 e 60, tipo Anisio Silva, Silvio Caldas, Nelson
Gonçalves e Lucio Alves. Fazia também algumas internacionais tipo Bienvenido
Granda ( El bigote que cantava) e Nat King Cole. Bastava que alguém pagasse
para ele um “gole” e o negão cantava e se acompanhava ao violão como ninguém.
Mas, na véspera de um feriado prolongado o negão exagerou e não se deu bem nem
teve muita sorte como dizia. Costumava
ir de bar em bar, tomando todas, tocando e cantando. Quando encontrava alguém
que lhe pagasse uma pinga, ali é que ele ficava! Pois bem, depois de tocar e beber em
alguns bares, chegou na casa do Seu Osório Manco, que possuía uma dessas
vendinhas abertas tipo janela para a rua, na Tenreiro Aranha, e que tinha
alguns banquinhos do lado de fora, bem como uma enorme vala na frente, a qual
vinha lá das bandas do bairro da Olaria e terminava na avenida 7 de setembro.
Para chegar até a vendinha, tinha que passar por uma ponte improvisada com
pedaços de madeira. “Capote” chegara no
Seu Osório Manco no final da tarde de um sábado, com sua bicicleta e com o
violão nas costas. Já tinha bebido em vários botecos onde era “habituè” em sua
via sacra. Estava visivelmente
embriagado. Sentou-se e pediu uma dose de Cocal, cachaça paraense e uma de suas
preferidas, pelo sabor e pela transparência, pois era quase incolor. Pegou seu
violão e começou a cantar e tocar, dedilhando com maestria músicas de seu vasto repertório. Logo foram
chegando outros fregueses do Osório Manco e todos faziam coro e aplaudiam no
final de cada canção cantada pelo “Capote”. Tinham direito a fazer pedidos
desde que pagassem seu próximo “gole”. E assim a coisa foi rolando. A noite
chegou, alguns se foram mas outros ficaram ou chegaram e a bebedeira entrou
pela madrugada a dentro. Já quase meia noite, o Osório Manco disse que ia
fechar seu negócio, pois tinha que ir dormir e sua patroa já o chamara pela
décima vez!...
--Calma aí Osório, afinal amanhã é
domingo e segunda-feira vai ser feriado! Ainda dá pra tomar mais uma –dizia o “Capote”,
já com a voz muito pesada!
Assim é que conseguiram ficar lá até
3 horas da manhã, quando o Osório Manco fechou a sua venda e anunciou a todos:
--Olha aqui, gente: agora tô fechando
mesmo. Quem quiser ficar aí fora que fique!
--Ok Osório, mas antes de fechar,
deixa uma garrafa de Cocal pra gente. O pessoal já fez a “vaquinha” e aqui tá o
dinheiro!
Osório Manco, claudicando como sempre,
foi lá prá dentro e voltou com a garrafa de pinga.
--Aqui está, prá não dizer depois
que eu sou sacana! Mas acho que vocês todos deviam ir dormir agora. Esse bairro
é perigoso, tá muito escuro, pode aparecer alguém, algum assaltante, sabe como
é!..
--Tudo bem Osório, você é caba bom!
Deixa pra gente só mais uns dois ou três
limões que é pro tira-gosto. Daqui a pouco vamos todos embora – disse-lhe o “Capote”.
--Leva aquela do Silvio Caldas “Capote” –
pediu-lhe um dos amigos. Aquela que fala das “Cinco Letras que Choram”...
Somente a lua clareava aqueles
notívagos. Os acordes afinados e plangentes do violão podiam ser ouvidos a
distância, tal era o silêncio da madrugada!...Mas aos poucos todos foram saindo
e deixaram o rebelde “Capote” sozinho, que
relutava em ir pra casa.
No domingo quando o Osório abriu
novamente a janela da sua venda, viu tudo desarrumado, a garrafa de pinga
vazia, copos quebrados no chão, pedaços de limão atirados por todos os lados,
junto a incontáveis baganas de cigarro. Porém, o que mais chamou a
atenção do Osório Manco, foi ter visto a bicicleta do “Capote” ainda
estacionada e apoiada no “descanso” do mesmo jeito que ele tinha
deixado quando chegou no dia anterior. Pensou logo que ele teria ido a pé,
levado pelos amigos boêmios que ficaram com ele naquela madrugada de seresta. Mas,
quando foi limpar aquela sujeira toda que os bebuns haviam deixado, olhou para
o interior da vala. E o que viu quase o fez desmaiar: o “Capote” estava em pé,
no fundo da vala, enterrado na lama até acima dos joelhos, com seu violão
pendurado na costa. Chamou por ele, gritou, mas não havia nenhuma reação.
Resolveu chamar sua mulher e outras pessoas que passavam na rua, já voltando da
missa. Juntaram-se vários curiosos e o Osório Manco correu pra chamar um guarda
que passava na outra rua. Afinal, a polícia tinha que ser chamada! Quando o
guarda chegou, pediu uma corda e desceu até o fundo da vala, constatando o que
todos temiam: o “Capote” estava morto!
--Coitado do “Capote” – dizia o
Osório Manco. Morte triste! Morreu em pé!
E algum dos curiosos, mais atrás, quase na orelha do Osório Manco arrematou:
--O “Capote” era duro na queda!...
PVH-RO, 07/08/13
Muito bom. Ainda alcancei estas valas pela cidade quando cheguei em 1986.
ResponderExcluirAli em frente ao Rondon Hotel, eu ficava da janela do apartamento vendo ratazanas, do tamanho de um gato, brigando por restos de comida, despejados pelos funcionários do hotel.