A
CAÇAMBADA
Samuel Castiel Jr.
“O destino é cruel e os homens são dignos de
compaixão.”
Arthur Schopenhauer
O velho relógio na parede marcava
17:15 h. O expediente da Prefeitura encerrava-se as 17:30 h. Era uma
sexta-feira e eu estava doido pra sair e começar meu final de semana. Mas o
telefone tocou quando eu já arrumava minhas coisas pra sair. Atendi. Do outro
lado da linha a voz rouca do chefe da garage ordenou-me que liberasse uma das
caçambas basculantes que estavam no
pátio para atender a uma emergência no bairro da Olaria. O motorista Nilson Oliveira já
estava se dirigindo para a garage com o objetivo de sair com a caçamba. Ainda perguntei se
seria preciso esperar seu retorno para guardar a viatura.
-- Não. Você libera a caçamba e
pode sair.
E foi exatamente o que fiz.
Entreguei a chave para o Nilson que apenas me perguntou se o carro estava
abastecido.
-- Sim. Lavado e abastecido –
respondi a ele.
Como responsável pelos veículos
oficiais da Prefeitura, recebia ordens diretamente do Prefeito José Saleh Moreb
ou do chefe da garage.
Nunca imaginei que naquela noite
do dia 26 de setembro de 1962 eu estaria indiretamente envolvido com um dos
maiores crimes políticos do País.
Havia naquela época dois grandes
grupos políticos em Porto Velho: Cutubas e Peles-Curtas, e que viviam se
degladiando e se alternando no poder. Os cutubas eram liderados pelo Cel.
Aluizio Ferreira que representava a direita toda poderosa e que já estava no
seu terceiro mandato de deputado federal. Os peles-curtas eram capitaneados
pelo médico Renato Climaco Borralho de Medeiros, líder negro da coligação de
centro, presidente do partido Social-Progressista e comandante da Frente
Popular, e que surgia como a grande esperança dos oprimidos, perseguidos, pobres
e desvalidos. Nesse ano, 1962, o Cel. Aluizio Ferreira decidiu não mais
concorrer a vaga de Deputado Federal, porém indicou seu substituto, o Major e
Engenheiro Militar Enio Pinheiro, seu primo, o qual
já tinha sido Diretor Geral da Estrada de Ferro Madeira Mamoré e Governador nomeado pela segunda vez, por indicação
novamente de Aluizio Ferreira em 1961. A
disputa ficou acirrada como sempre e naquela noite de 26 de setembro de 1962,
os pele-curtas faziam seu último comício antes da eleição.
Nilson saiu da Prefeitura as 17:30
h, com a missão de ir prestar um socorro no bairro da Olaria, mas dizem que na realidade essa caçamba teria ido dar suporte ao comicio dos cutubas que, simultaneamente estava acontecendo no bairro do Areal. Na volta, ele "erra" o caminho, que é diametralmente oposto, e dá de cara com a multidão de aproximadamente 5.000 pessoas
aglomerada para o comício dos peles-curtas, na rua Lauro Sodré, próximo onde
funcionau a Rondasa, antiga concessionária da Volkswagen. Estaciona a caçamba e
vai até um boteco na esquina tomar um trago. Conhecia bem aquele bairro, pois
ali perto ficava o “randevous” da Delicia, onde vez por outra levava suas
namoradas. Bebeu vários tragos e, mais tarde, resolveu que deveria ir embora.
Ao se dirigir ao veículo, que estava estacionado próximo a uma esquina, foi
reconhecido por alguém que gritou:
--Olha aqui um traidor cutuba!
Vamos dar umas porradas nele, gente!
Nilson correu em direção a
caçamba, trancando rapidamente as portas. A multidão enfurecida começou a
apedrejar o veículo e tudo virou uma histeria e fúria coletivas. Foi então que
Nilson acuado e apavorado, com medo de ser linchado, ligou o motor e saiu com a
caçamba, na tentativa de chegar até a esquina para tentar sair do meio daquela
turba enlouquecida. O pânico então se estabeleceu e o horror se estampou no
rosto das pessoas que aos gritos caiam, eram pisoteadas ou atropeladas pela
caçamba. Corpos feridos, ossos quebrados, gritos de desespero. A caçamba
felizmente estancou e o Nilson conseguiu sair do veículo, misturou-se na
multidão, mas foi preso imediatamente, o que o salvou do linchamento. Os
feridos e quebrados chegavam aos montes ao Hospital São José ( hoje Policlinica
da PM). A Direção do Hospital solicitou a presença de todos os médicos para
ajudar no atendimento aos feridos. Para completar esse quadro de desespero, as luzes da cidade apagavam-se a meia noite para poupar combustível e geradores, só voltando a funcionar as 5:00 h da manhã. A escuridão só era quebrada pelos farois dos carros que passavam em alta velocidade, levantando muita poeira. O quadro era aterrador! As pessoas desesperadas em busca de notícias e de seus familiares aglomeravam-se na porta do Hospital São José. Mesmo assim, para o grosseiro e coletivo
atropelamento, as vitimas fatais, que morreram no local, foram apenas três,
porém dezenas de feridos e quebrados foram contabilizados. Proporcionalmente, e
caso a caçamba não tivesse estancado, poderia ter sido bem pior. Os
peles-curtas no dia seguinte saíram numa passeata pela avenida 7 de Setembro,
clamando por justiça e pedindo a punição dos culpados. Esse episódio marcou o
fim do aluizismo, pois o médico negro Renato Medeiros ganhou as eleições com
ampla maioria. Entretando a Revolução de 64, sepultaria por mais de 20 anos o
sonho dos oprimidos que ansiavam por uma
república socialista que jamais viria acontecer no País.
Intrigado com essa tragédia da
caçambada, cheguei a prestar depoimento junto a polícia, pois afinal, como
funcionário da Prefeitura, tinha liberado a arma do crime para o Nilson naquela
fatídica sexta-feira. Esperei algum
tempo e, muito chocado ainda com o que acontecera, e com as hipóteses
levantadas de que o Nilson teria recebido ordens do próprio Prefeito para atropelar a massa de
peles-curtas, fui visitar o motorista encarcerado na Casa de Detenção, para
onde foi levado depois de ficar alguns dias preso no quartel militar do
exercito, pois temiam por sua segurança. Encontrei-o em estado deplorável
fisicamente, sujo, magro e barbado, apresentando ainda as marcas visíveis de
espancamentos. Perguntei-lhe então o que o levou a cometer aquele massacre com
a caçamba, e se alguém o incumbira dessa missão escabrosa. Disse-me que não,
que ninguém lhe deu missão alguma. Tudo acontecera por uma infeliz obra do
destino. Tinha que ser ele, um simples e pobre trabalhador da Prefeitura, para
se envolver nesse imbróglio político sem precedentes na história. E foi assim
que, com esse triste e trágico episódio, o Nilson sem perceber sepultava de vez
e colocava uma pá de cal no domínio aluizista.
Antes de me despedir do Nilson
na Casa de Detenção, ele me confessou que muitas noites tinha pesadelos
horríveis, onde se transformava num
escorpião negro e um caudilho truculento ateava fogo num circulo em torno dele,
até que se matasse com o veneno do seu próprio ferrão. Acordava então aos
gritos, banhado de suor. Nunca mais tornei a vê-lo.
Nota do Autor: Alguns dados, datas e nomes de personagens
foram extraídos do Documentário do
Jornalista Zola Xavier, publicado no Jornal Alto-Madeira, edição de 08 e
09/09/09.
PVH-RO, 10/09/13
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